Pontos e contos de um cristão pós-moderno

O Cristão e a Retórica

Um dos desafios que a era pós-moderna coloca ao Cristianismo brota da obsessiva desconstrução de todo e qualquer tipo de discurso. A filosofia pós-moderna, a galope de ideias correta ou incorretamente atribuídas ao filósofo francês Jacques Derrida, postulou há décadas que a linguagem não admite qualquer referente objectivo. Por outras palavras, o discurso humano não é capaz de descrever o real, pelo que tudo aquilo que tomamos por realidade não passa de mera construção social. O discurso humano é, portanto, mero produto do caldo social no qual o indivíduo está mergulhado. Mais do que apontar para uma realidade que seja objectiva e independente do indivíduo, o discurso humano pode, quando muito, constituir objecto de análise para extrair considerações sociológicas sobre o indivíduo que o profere. O discurso é então desconstruído, virado do avesso, para revelar os factores sociais e culturais que lhe estão subjacentes.

A esta filosofia dita pós-estruturalista acresce ainda a peregrina tese de Michel Foucault de que toda a linguagem é inerentemente opressora. Para Foucault, a verdade é socialmente determinada, construída tão somente a partir do discurso feito pelos grupos dominantes. Neste sentido, a linguagem é mera arma num interminável jogo de poder. Quem controla a linguagem – quem determina o discurso oficial – constrói a realidade e usufrui do poder. Aos grupos anteriormente dominados, mantidos nas franjas da sociedade por meio de discursos oficiais que perpetuavam o status quo, cabe agora desconstruir a linguagem dos anteriores discursos, revelando a violência que lhe estava inerente, e construir discursos alternativos (usando, se necessário, uma novilíngua) que promovam a libertação e o fim da subjugação. (Note-se, porém, que esta hermenêutica levada à sua conclusão lógica implicará que os novos discursos são também inerentemente opressores).

Esta filosofia não ficou remetida às universidades francesas, mas penetrou nas várias camadas do mundo ocidental, incluindo nos corredores das câmaras legislativas. Para além disso, as principais ideias foram popularizadas e manifestam-se hoje de forma explosiva nas redes sociais por meio, por exemplo, da famigerada cultura de cancelamento. Importa contudo afirmar que a análise de Foucault é obviamente aplicável a certos contextos. Afinal, a propaganda (isto é, o discurso oficial) foi uma ferramenta eficazmente usada pelos regimes totalitários do século XX, alguns deles apostados em construir completas distopias como George Orwell tão sublimemente expôs. A linguagem (incluindo muitas vezes a linguagem teológica) tem sido também amplamente usada para perpetuar outros sistemas de opressão institucionalizada – a escravatura será, talvez, o mais óbvio – bem como estereótipos que, cristalizados na nossa imaginação colectiva, são efetivamente nefastos para determinados grupos. A título de exemplo, podemos lembrar que diversas pesquisas têm apontado disparidades na forma como os media tendem a enaltecer a “capacidade atlética” do desportista negro ao mesmo tempo em que destacam a “inteligência” do desportista branco. Também é possível dar parcialmente razão a Michel Foucault no que toca à forma como a linguagem pode ser usada para promover estereótipos de género – e aqui também a Igreja poderá fazer mea culpa… Como tem sido apanágio deste espaço, reconheço que a desconstrução, incluindo a desconstrução da linguagem, é benigna e necessária em diversos contextos. A pós-modernidade não é o demónio e a Igreja pode dialogar com ela e assimilar, com sensibilidade e discernimento crítico, as correções benignas que ela provoca.

Por outro lado, a mania de procurar elementos opressores em todo e qualquer discurso e a obsessão desconstrutiva que daí advém originam hoje um chorrilho de aberrações sem nexo, ilustradas, por exemplo, por aquele congressista americano que concluiu a sua oração com “Amen and Awomen” ou pela sugestão de que a palavra inglesa “history” seja substituída por “herstory”. Para além destas situações quase anedóticas (mas não desprovidas de poder simbólico), esta filosofia da linguagem coloca outros desafios mais prementes ao Cristianismo, uma vez que o Cristianismo não se faz sem discurso. Ainda para mais, trata-se de um tipo de discurso que tece considerações de carácter absoluto sobre a realidade e que ancora essas considerações numa Pessoa particular. A objectividade e a exclusividade em que assenta a fé cristã – Jesus Cristo como caminho, verdade e vida – são ambas anátemas à luz da filosofia hoje vigente.

Estamos, portanto, numa espécie de encruzilhada: como elaborar discurso cristão se todo o tipo de discurso é hoje tido como inerentemente agressivo? Nestas circunstâncias, podemos detectar entre os cristãos (e, particularmente, no evangelicalismo) uma reação de total rejeição dos princípios pós-modernos e uma reiterada insistência na possibilidade de usar a linguagem como ferramenta para descrever de forma objectiva (toda) a realidade. Esta reação tende a rejeitar a dialética e a ignorar as imensas áreas cinzentas da nossa existência e da nossa missão cristã. Na sua versão mais extremada (e não me remetendo agora à esfera cristã) a completa rejeição destas ideias pós-modernas traduz-se também no uso abusivo da retórica. A crença de que toda a desconstrução da linguagem é absurda e de que merece apenas desprezo dá azo a uma retórica agressiva, sem escrúpulos. Ao chamado politicamente correto que procura policiar toda a nossa linguagem responde-se com um politicamente incorrecto desregrado, aumentando o volume de uma retórica propositadamente inflamada. A partir dos dois extremos deste fenómeno de ação-reação erguem-se trincheiras num mundo ocidental cada vez mais polarizado, como é evidente na esfera política e no sub-mundo das redes sociais.

Acredito que neste contexto, como em tantos outros, o caminho cristão terá de ser trilhado como uma terceira via. A ética sugerida por Jesus não está refém de lógicas redutoras e dualistas. Jesus é aquele que se recusa a optar entre a resistência violenta e a anuência passiva; ao invés, Jesus inaugura a via da resistência não-violenta, dá a outra face, caminha a milha extra. A ética cristã convida à prática de uma imaginação espiritual (ou seja, mediada pelo Espírito Santo) que transcende a lógica da inevitabilidade. Somos confrontados neste momento histórico por duas forças polarizadoras e pode parecer-nos que não há forma de escapar à atração exercida por uma destas forças; podemos sentir que é inevitável ceder a uma delas. Mas a Igreja não se move nem pela força de um extremo, nem pela violência do outro, mas pelo Espírito de Deus.

Sim, carecemos de um reavivamento espiritual que venha re-baptizar as nossas línguas e o nosso discurso. Entre o (paradoxal) totalitarismo pós-moderno que visa suprimir todo o discurso objectivo e absoluto e uma reação oposta que faz uso de um discurso propositadamente agressivo e polarizador (e que, ironicamente, acaba por dar razão a Foucault no que respeita à existência de linguagem inerentemente violento) carecemos do dom espiritual de criar pela palavra. “Pela fé entendemos que o mundo foi criado pela palavra de Deus” (Hebreus 11:3). O discurso de Deus (que, em termos teológicos, coincide em última instância com Jesus Cristo, o Logos divino) constrói, gera vida, cria. Por meio da sua palavra, Jesus perdoou, curou, transformou e deu vida. Deus demonstra assim que não podemos ler toda a realidade por meio da teoria de Foucault, porque o discurso divino é inerentemente abençoador, gracioso e reconciliador. Será que este discurso não constitui também um modelo para a missão da Igreja neste momento histórico? Não estamos nós a ser desafiados para a imitação de Cristo por meio da adopção de uma praxis que visa construir, gerar vida, criar pela palavra?

Sim, rejeitamos a postulação pós-moderna de que todo o discurso é agressivo, porque temos experimentado em nós o efeito transformador e benigno do discurso de Deus; mas, por causa dessa mesma experiência, rejeitemos igualmente a retórica reactiva e violenta que tem tentado capturar a imaginação das massas, incluindo entre cristãos. Rejeitamos que o nosso discurso tenha de ser silenciado, mas rejeitamos igualmente que a alternativa passe por um discurso agressivo, destrutivo, alienador. Com Cristo podemos aprender uma terceira via caracterizada pela retórica que cria pontes, que promove a edificação, que dá graça aos que a ouvem (cf. Efésios 4:29). Só esta pode ser a vocação da Igreja numa era de trincheiras: uma praxis de cura e de reconciliação para cuidar daqueles que estão feridos ou perdidos em terra de ninguém. Esta praxis começa necessariamente no discurso porque, como dizia Martin Luther King Jr., “em última análise, meios e fins têm de ser coerentes porque o fim é preexistente nos meios e, em última instância, meios destrutivos não podem produzir fins construtivos.”

Encontro Cristão

O potencial ecuménico do modelo eclesiástico das Igrejas Livres (segundo Miroslav Volf)

Recensão crítica: Volf, Miroslav. After Our Likeness: The Church in the Image of the Trinity. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1998. 

No livro After Our Likeness: The Church in the Image of the Trinity, o teólogo Miroslav Volf articula um modelo eclesiológico a partir de uma perspectiva das Igrejas Livres (Free Churches) em diálogo com as perspectivas católica e ortodoxa representadas, respectivamente, pelos teólogos Joseph Ratzinger e John Zizioulas. O baptista John Smyth (que é por vezes apelidado de “o primeiro baptista”) é outro dos interlocutores, escolhido como representante histórico do congregacionalismo. O propósito de Volf é “articular uma visão da Igreja como imagem do Deus trino” que eleva o “clamor de protesto das Igrejas Livres… ao estatuto de um programa eclesiológico.” A argumentação cuidadosa e convincente de Volf reforçou a minha predisposição para afirmar o modelo das Igrejas Livres (predisposição resultante de ter sido educado como Protestante num país de maioria católica). Como é evidente, um único livro não pode resolver os debates eclesiológicos de extrema complexidade que caracterizam a história da Igreja. Portanto, esta minha recensão crítica procura destacar os pontos fortes da proposta de Volf, mas também apontar aspetos que, a meu ver, continuam a exigir reflexão e elaboração.

Volf começa por expor a eclesiologia de Ratzinger, uma eclesiologia que assenta no conceito de Christus totus. Este conceito faz uma leitura literal da imagem da Igreja como corpo de Cristo (1 Cor 12:27); Cristo e a Igreja formam “um sujeito único,” tanto “sincronicamente” (em todos os lugares neste preciso momento) quanto “diacronicamente” (em todos os momentos ao longo da História). Do conceito de Christus totus brota depois uma “eclesiologia eucarística,” na qual a Igreja encontra o seu “centro vital” na celebração da Eucaristia. Esta celebração providencia uma “visibilidade tangível” da comunhão da Igreja com o Deus trino. Contudo, para Ratzinger, a comunhão só é verdadeiramente garantida se cada comunidade eclesiástica receber todo o Cristo a partir “da comunidade sacramental … que permanece una através da história.” Ou seja, esta abordagem eclesiástica requer uma “tradição transtemporal” suportada por uma estrutura hierárquica assente na “sucessão apostólica com o ofício petrino no seu centro.” Ratzinger reafirma assim aquele que o modelo clássico do catolicismo: há uma Igreja una e visível correspondente à estrutura católica romana sob a autoridade papal que remonta ao apóstolo Pedro. Note-se, contudo, que o conceito de Christus totus pode ser articulado de formas menos exclusivistas, como demonstra J. David Moser. Nomeadamente, não é necessário requerer que Cristo e a Igreja constituam um único sujeito e, muito menos, que a Igreja seja ontologicamente equiparada a Cristo. Por preservar essa distinção ontológica e por articular a doutrina de um ponto de vista escatológico, Karl Barth pode incorporar uma versão modificada do Christus totus na sua teologia Protestante.

A abordagem de Ratzinger procura afirmar a unidade da Trindade, a unidade da Igreja com Cristo e a unidade da Igreja em si mesma por meio de uma constante e sistemática absorção do muitos no um. (A relação muitos/um é um tema filosófico clássico relacionado com o problema dos universais de Platão e com a metafísica aristotélica. No contexto do livro de Miroslav Volf, o conceito é explorado, sobretudo, do ponto de vista do binómio unidade/diversidade.) A preferência do um em relação ao muitos está em harmonia com o modelo trinitário de Ratzinger que assenta fortemente no chamado modelo psicológico da Trindade, conforme proposto por Santo Agostinho. Este modelo estabelece uma analogia entre Pai, Filho e Espírito Santo com Memória, Intelecto e Amor. Uma vez que memória, intelecto e amor correspondem a atributos do ser humano e não são categorias dotadas de personalidade, esta abordagem à Trindade dá força à essência una divina de Deus (oussia) por oposição às relações intratrinitárias (hypostasis). A unidade sobrepõe-se (e ofusca) a diversidade. A mesma preferência pela valorização da unidade sobre a diversidade manifesta-se no plano eclesiástico, gerando uma “estrutura monística para a igreja.”

No segundo capítulo, Volf analisa a eclesiologia eucarística alternativa de John Zizioulas, representativa da Igreja Ortodoxa. Este modelo eucarístico difere daquele que é defendido por Ratzinger, porque, em primeiro lugar, é “pneumatologicamente” mediado. Isto é, Zizioulas presume que o Espírito Santo desempenha um papel central na constituição e na unidade da Igreja. Assim, e uma vez que a ação do Espírito Santo é, a cada momento, a antecipação do eschaton (do Reino de Deus) no aqui e no agora, o modelo de Zizioulas é também escatologicamente orientado (na verdade, Volf considera que Zizioulas incorre numa “escatologia sobre-realizada”). Uma segunda diferença significativa entre os modelos de Zizioulas e de Ratzinger diz respeito à totalidade da Igreja. Para Zizioulas, cada comunidade eucarística a nível local é uma realização da Igreja Universal e Histórica. Portanto, o sistema episcopal é suficiente para garantir a catolicidade da comunidade local sem que seja necessária uma estrutura hierárquica global sob a autoridade papal. Sublinhe-se, contudo, que Zizioulas estabelece um critério de catolicidade local: de acordo com o modelo eclesiástico episcopal de Zizioulas deveria existir uma única comunidade eclesiástica e eucarística em cada vila ou cidade.

De acordo com a análise de Volf, as diferenças entre Zizioulas e Ratzinger resultam de uma abordagem alternativa ao binómio um vs. muitos: para Zizioulas, existe uma “relação assimétrica-recíproca” por meio da qual o um constitui o muitos, enquanto o muitos é condicionado pelo um (“the one constitutes the many, [while] the many are conditioned by the one”). A assimetria significa que a diversidade (muitos) é reconhecida (contra Ratzinger) mas é ainda subordinada ao um. Esta assimetria manifesta-se no plano trinitário, no qual Zizioulas “insiste na monarquia do Pai” (o um) em relação ao Filho e ao Espírito (o muitos); manifesta-se também no plano cristológico, em que Cristo (o um) “incorpora” a igreja (o muitos); e, ainda, no plano eclesiástico em que o bispo “funciona como um alter Cristo que une o muitos [a congregação] em si mesmo.” Convém notar que, de acordo com a crítica de Jaroslav Skira, a assimetria do modelo de Zizioulas é exageradamente enfatizada por Volf. Skira afirma que o modelo de Zizioulas é mais “integrador no que respeita a preservar a particularidade [muitos] juntamente com a unidade [um].” Por isso, Skira sugere uma maior possibilidade de convergência ecuménica entre a Igreja Ortodoxa e as Igrejas Livres, uma vez que já existe uma “congruência” em termos da importância e da centralidade da igreja local.

Nos capítulos seguintes, Volf apresenta o seu próprio “programa eclesiológico.” O capítulo 3 alicerça a abordagem de Volf no conceito de assembleia à luz do Novo Testamento. O texto de Mateus 18:20 assume particular importância para o programa de Volf: “Pois onde se reunirem dois ou três em meu nome, ali eu estou no meio deles.” É a partir deste texto que Volf articula a sua proposta eclesiológica orgânica e aberta, uma proposta que traz consigo o potencial ecuménico de ultrapassar os impasses resultantes de eclesiologias demasiado rígidas.

Pessoalmente, acredito que a teologia cristã deve brotar “do chão da vida,” constituindo-se como uma teologia de baixo para cima (bottom-up) de forma a abranger a realidade empírica e a experiência humana, evitando assim que nos tornemos vítimas fáceis de abstrações fantasiosas e quase-gnósticas. Por esse motivo, subscrevo o ponto de partida de Volf. Articular critérios eclesiásticos a partir de Mateus 18:20 parece-me mais sólido e promissor do que aquilo que é proposto pelos seus interlocutores neste livro. Se a igreja está onde “se reunirem dois ou três em nome de [Cristo],” os critérios de eclesialidade podem ser baseados na experiência concreta das comunidades em vez de ser impostos por uma estrutura superior. De facto, Volf propõe critérios mais simples (e, do meu ponto de vista Protestante, mais bíblicos) para definir a eclesialidade das comunidades (isto é, sob que condições é que cada comunidade é Igreja), tais como: confissão pública de Jesus como Senhor e Salvador, compromisso com Cristo, e a prática dos sacramentos (baptismo e comunhão). Devo observar, no entanto, que um tratamento mais cuidadoso será necessário de modo a abordar uma tendência das Igrejas Livres que passa pela desvalorização da comunhão. Miroslav Volf afirma que os sacramentos só pertencem à essência da igreja na medida em que “eles são uma forma de confissão de fé.” Num momento da história em que parece haver uma sede de significado experiencial (assinalada, no cristianismo, por um movimento de retorno à liturgia) pergunto-me se, neste ponto, será possível inculcar na eclesiologia das Igrejas Livres um núcleo eucarístico mais forte. Tal parece-me ser viável e necessário, de forma a enraizar a experiência de ser Igreja no evento decisivo da redenção e na Pessoa decisiva da História.

No capítulo 4, Volf aborda os aspectos cognitivos e volitivos da fé e do amor. À luz de Mateus 18:20, podemos entender este capítulo como sendo a tentativa de Volf articular o que significa “reunião em nome de Cristo.” A este respeito, posso observar que sou receptivo a abordagens que não exijam que a dimensão cognitiva assuma prevalência a todo o momento. Tal como Volf, afirmo que a fé cristã inclui uma componente proposicional. Para efeitos de determinação de critérios de eclesialidade, creio que essa componente se pode resumir aos credos clássicos. Mas, por outro lado, creio que a experiência e a praxis (elementos volitivos) podem ser a porta de entrada na fé cristã, relegando a cognição para uma fase posterior. Segundo David Cunningham, a eclesiologia de Miroslav Volf permanece “desnecessariamente secular” neste ponto, pois favorece a abordagem racionalista do Iluminismo. Cunningham também observa que Volf poderia ter prestado mais atenção à abordagem de Zizioulas neste aspecto. Para Zizioulas, a centralidade da Eucaristia constitui uma tentativa de “libertar a teologia contemporânea da devoção à razão técnica.” A fé cristã é uma fé que pensa, é uma fé que procura uma articulação sistemática dos seus pressupostos e consequências, é uma fé da palavra, do logos. Mas não é uma fé racionalista, pois abraça também o mistério e reconhece a impossibilidade de sistematizar Deus por completo. A devoção à razão não é intrínseca ao cristianismo; é antes uma consequência da Modernidade. Neste sentido, creio que o Protestantismo (e sobretudo o evangelicalismo) carece de maior abertura à pós-modernidade. Temos sido céleres a identificar os desafios que ela nos coloca e a apontar aquilo que ela traz de perverso. Mas todas as eras trazem consigo o bom e o mau, a ambiguidade inerente aos caminhos humanos. Assim como a Modernidade trouxe aspectos positivos, também a Pós-Modernidade os traz. E a nossa eclesiologia pode ser suficientemente maleável para incorporar todos os aspectos que estejam alinhados com o Evangelho.

No capítulo 5, aplicando o “modelo social” da Trindade proposto pelo teólogo Protestante Jürgen Moltmann, Volf “concebe a unidade de Deus por meio da perichoresis,” ou seja, por meio das relações intratrinitárias, em vez de enfatizar a essência una divina (oussia). Na minha óptica, este modelo supera com sucesso a infeliz tensão entre unidade e comunhão que é evidente na abordagem de Ratzinger. Volf também propõe o conceito de “personalidade pericorética”: uma analogia (necessariamente fraca) entre a interpenetração das três pessoas da Trindade e a “internalização mútua das características pessoais que ocorre na igreja por meio da ação do Espírito Santo.” Ou seja: assim como Pai, Filho e Espírito Santo partilham a essência divina e se definem mutuamente, também os membros da igreja se definem entre si, por ação do Espírito. Note-se que esta comunhão eclesial é, mais uma vez, determinada pneumatologicamente (não é diretamente cristológica, ao contrário daquilo que propõe Ratzinger). Além disso, no modelo de Volf as relações intratrinitárias são simétricas, pois Pai, Filho e Espírito Santo são equiprimários (contra Zizioulas). Por analogia, este modelo trinitário origina uma “comunidade policêntrica” ao nível eclesial: não há um bispo (o um) a constituir a congregação (o todos). As pessoas eclesiais são, à partida, equiprimárias (subordinadas apenas a Cristo por meio do Espírito Santo).

O capítulo 6 articula as implicações deste modelo trinitário para a estrutura da igreja. Uma consequência importante da abordagem de Volf é a afirmação dos leigos como membros plenos da Igreja, apontando assim para um sacerdócio verdadeiramente universal (um dos princípios da Reforma Protestante): todos os cristãos são chamados a servir ativamente na congregação e a todos os cristãos são concedidos carismas pelo Espírito. Embora a abordagem de Volf dispense critérios institucionais para determinar a eclesialidade de cada comunidade, ele observa que as estruturas formais da igreja continuam a ser necessárias pelo menos do ponto de vista sociológico, uma vez que a “espontaneidade completa” é impossível. A diferenciação de papéis é necessária dentro da congregação e a necessidade do cargo pastoral surge neste contexto: para Volf, os titulares do cargo serão aqueles que se concentram no “todo da igreja local.” Embora Volf procure fundamentar teologicamente a instituição deste cargo, socorrendo-se do exemplo das congregações cristãs primitivas, não estou convencido de que esta seja realmente uma necessidade teológica e não sociológica. Por fim, Volf destaca um risco inerente à abordagem das Igrejas Livres: o risco do caos. Um modelo demasiado orgânico e independente de qualquer estrutura pode desembocar na confusão. Mas note-se que, neste sentido, e como diz Cunningham, a articulação de uma eclesiologia para as Igrejas Livres “constitui [por si só] motivo para celebração,” uma vez que as Igrejas Livres tendem a reagir com suspeição a “tudo quanto pareça eclesial.”

O último capítulo é dedicado à questão da catolicidade: de que forma é que a Igreja é una e completa? Catolicidade implica uma “unidade diferenciada,” (o muitos em harmonia no um) mas, de acordo com Volf (e de acordo com aquilo que nos diz a experiência), esta categoria é essencialmente escatológica. No presente, e na história, a perfeita unidade apenas pode ser “antecipada” de “um modo incompleto” e parcial. Assim, a catolicidade que a igreja pode presentemente experimentar e manifestar assenta sobretudo na igreja local. Portanto, esta compreensão de catolicidade culmina numa eclesiologia “favorável à congregação” (cf. John W. Steward). Ainda assim, de modo a impedir que uma igreja local se auto-considere católica quando está totalmente isolada de outras congregações, Volf acrescenta um “sinal de catolicidade” fundamental: a “abertura a todas as outras igrejas.” Esta marca de catolicidade é consistente com a intenção de Volf em oferecer um modelo eclesiológico para as Igrejas Livres que vise também uma “abordagem conceptual ecuménica e pós-confessional.”

Do ponto de vista ecuménico, os modelos católico romano e ortodoxo parecem constituir becos sem saída, por produzirem, necessariamente, eclesialidades exclusivistas (pelo menos de acordo com a análise feita por Miroslav Volf e que é, obviamente, passível de correção e de contraditório por parte de católicos e ortodoxos). Em sentido contrário, o modelo aberto e orgânico preconizado por Volf possui verdadeiro potencial ecuménico, porque, em teoria, pode ser adoptado como um mínimo múltiplo comum de eclesialidade mútua entre diferentes confissões cristãs, independentemente das suas estruturas eclesiásticas subsequentes. Por fim, também concordo com John Steward, quando este observa que Volf não leva em devida consideração os “dilemas teológicos associados à localização de uma congregação (igreja livre ou outra) em contextos socioculturais específicos e variados.” O conceito de catolicidade de Volf permanecerá incompleto se não lhe forem acrescentados princípios concretos para abordar aspectos contextuais. Dito de outra forma, não basta dizer que uma comunidade eclesial é aquela que confessa Cristo como Senhor e Salvador (para além de cumprir os outros critérios); é também necessário traduzir essa confissão para o contexto do aqui e do agora. O critério de eclesialidade terá de providenciar parâmetros para que cada comunidade responda à perene questão de Dietrich Bonhoeffer: “Quem é Cristo para nós hoje?”

Concluo esta análise com um comentário sobre beleza. A união é uma coisa bela (cf. Salmo 133). As eclesiologias católicas e ortodoxas tentam garantir que a beleza da Igreja unida é concretamente visível no aqui e no agora. Essa visibilidade tem um carácter global no caso do catolicismo e um carácter local no modelo episcopal Ortodoxo. Ainda que eu também gostasse de ser testemunha de uma maior densidade dessa beleza nas nossas cidades e no nosso mundo, no aqui e no agora, concordo com Miroslav Volf quando ele afirma que as imagens providenciadas pelas Escrituras relativamente à total unidade, completude e catolicidade da Igreja são escatologicamente orientadas. Podemos orar pela unidade, podemos almejar a unidade, podemos até conquistar mais graus dessa unidade, mas não podemos impô-la no presente por meio de estruturas hierárquicas. A união só é bela quando resulta de pessoas livres unidas numa relação de amor (muitos que, em total liberdade, constituem um). A própria Trindade mostra-nos que a beleza é sempre livre, nunca coerciva. Por outro lado, o modelo de Volf permite que as Igrejas Livres assumam um papel preponderante na frente ecuménica. Aplicando os princípios de eclesialidade de Volf — ou de Jesus: “onde se reunirem dois ou três em meu nome” — os cristãos livres dão por si numa posição privilegiada para promoverem e experimentarem mais unidade e mais beleza. Os nossos irmãos Católicos e Ortodoxos que tenham aderido a uma eclesiologia demasiado rígida terão sempre limitações no que respeita às suas próprias iniciativas ecuménicas. É difícil imaginar que os esforços ecuménicos de alguém que siga Ratzinger ou Zizioulas à letra (isto, mais uma vez, segundo a interpretação de Volf) consigam escapar a uma certa artificialidade. Afinal, a eclesiologia destes teólogos pressupõe um elevado nível de exclusividade das suas confissões enquanto constituintes da Igreja Universal. Sobejará inevitavelmente a sensação de que a Igreja tem filhos e enteados. (Contudo, importa que estejamos também receptivos à abertura de comunidades de base cujas abordagens não sejam baseadas nas doutrinas oficiais das respectivas confissões.) Já a eclesiologia orgânica e aberta das Igrejas Livres permite que os cristãos livres encarem o ecumenismo com menos ressalvas e menos obstáculos, pois nada obsta a que reconheçamos a eclesialidade de qualquer comunidade onde dois ou três se reúnam em nome de Cristo, independentemente da confissão religiosa em que essa comunidade se insere. A proposta de Volf convida assim os protestantes à prática de um ecumenismo hospitaleiro, pronto a reconhecer a eclesialidade alheia ainda que esse reconhecimento não seja, à partida, recíproco. Trata-se de “caminhar a milha extra” no plano do debate ecuménico. Reconhecer e elevar o estatuto do outro sem esperar que o outro faça o mesmo. Volf coloca assim o Protestantismo numa posição única para gerar verdadeiro encontro cristão.

Referências

Cunningham, David S. “Book Reviews.” Theology Today 57, no. 1 (April 2000): 122-5.

Moser, J. David “Totus Christus: A Proposal for Protestant Christology and Ecclesiology.” Pro Ecclesia: A Journal of Catholic and Evangelical Theology, 29(1), (2020): 3-30.

Skira, Jaroslav Z. “Book Review: After Our Likeness: The Church as the Image of the Trinity.” Theological Studies 60, no. 2 (May 1, 1999): 376-7.

Steward, John W. “The Shape of the Church: Congregational and Trinitarian.” The Christian Century, May 20-27, (1998): 541-9.

Volf, Miroslav. After Our Likeness: The Church in the Image of the Trinity. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1998. 

O Pai Nosso em tempo de Pandemia

Pai Nosso

É hora de recordar que o Pai é nosso. Jesus, sendo o Filho, tinha total legitimidade para se dirigir ao Pai no singular. Contudo, é ele mesmo quem nos ensina o plural. Estamos nisto juntos e o Pai é pai de todos. Erguem-se-lhe hoje vozes aflitas de todas as línguas, etnias, regiões. A sua parentalidade transcende passaportes e não reconhece fronteiras. Infelizmente, o combate ao vírus determina que as fronteiras físicas tenham de ser apertadas ou até encerradas. Muitos de nós vemo-nos forçados a estabelecer fronteiras até dentro das nossas cidades, dentro dos nossos prédios, dentro das nossas casas, em completo isolamento. Esta é a estratégia a que o nosso inimigo nos obriga. Mas convém manter a perspectiva devidamente focada: a doença é o inimigo comum. O outro – seja ele o vizinho do lado ou o desconhecido do outro lado do globo – é aliado. Nas grandes guerras do passado não seria possível adoptar esta perspectiva; ficávamos então a mercê da retórica dos líderes para determinar “bons” e “maus.” Mas não deixemos que os líderes mundiais nos manipulem neste momento (a despeito das suas múltiplas tentativas): nesta guerra estamos todos do mesmo lado! Somos aliados numa causa comum. A humanidade está junta nisto. O Nosso que nós oramos abraça todos. O Deus em quem confiamos é Abba – pai querido – de todas as suas crianças. (Manter esta perspectiva é, desde já, extremamente importante para fazer frente àqueles que, finda a crise, tentarão aproveitar-se das fronteiras agora estabelecidas para promover um mundo mais dividido e menos solidário.)   

Que estás no céu

Reconhecemos a transcendência do Pai. Na continuação da oração perceberemos que transcendência não é sinónimo de distância nem de abandono. O Deus a quem oramos não se confunde com a divindade ausente da lógica deísta, não é o motor imóvel de Aristóteles, nem uma força impessoal meramente responsável por leis físicas. Saber que Deus é Abba é saber que Ele está próximo, presente, íntimo. Ainda assim, reconhecemos, sem confusão, que o Pai está no céu, isto é, habita uma realidade que transcende a nossa. E, face ao flagelo que presentemente enfrentamos, a transcendência do Pai serve-nos de alento pois implica que o Pai não está sujeito às circunstâncias que a nossa presente condição nos impõe. O Pai não está retido em quarentena, não está em isolamento social, não está impedido de se fazer presente por causa de fronteiras encerradas ou de lockouts nas nossas cidades. Ou seja, precisamente por operar a partir de uma realidade que transcende a nossa, o Pai pode fazer-se presente nesta realidade. (E é para essa presença que aponta toda a oração do Pai Nosso: dirigimo-nos inicialmente ao Pai Nosso que está no céu, mas descobrimos, ao orarmos, que o Pai Nosso está na terra, como diria José Tolentino Mendonça.)

Santificado seja o Teu nome

Na cosmovisão judaica, os nomes não eram encarados como meros acessórios para facilitar a identificação de objectos, locais ou pessoas. Pelo contrário, o nome assumia uma importância central, constituindo parte integrante da identidade e da essência daquilo ou daquele a que se referiam. Assim se explica o zelo dos Israelitas relativamente ao nome de Deus (bem explícito no 2º dos 10 mandamentos). Santificar o nome de Deus passa por afirmar quem Ele é e por reconhecer a absoluta distinção ontológica entre Ele e nós. “Tu és Deus e eu não” – tantas vezes me esqueço deste princípio! Elevo-me em auto-consideração a patamares que estão reservados ao Pai. Julgo exercer controle sobre as circunstâncias, ser soberano, pôr e dispor. Mas a pandemia incontrolável força-me a encarar a minha fragilidade e a reconhecer que o Pai é santo, ou seja, é “totalmente outro” (como dizia Karl Barth), para lá da minha compreensão e da minha condição. Por outras palavras, santificar o nome do Pai é colocar os pontos nos is, é ajustar o foco à realidade, é assumir também a nossa condição de filhos e confiar no Pai. A Tradução Ecuménica da Bíblia traduz esta frase como “dá a conhecer a todos quem tu és,” acrescentando-lhe assim uma dimensão horizontal que me parece em harmonia com a oração no seu todo e que é especialmente aplicável no nosso momento presente. Queremos que, em plena crise, todos conheçam o Pai. Que todos saibam quem Ele é, que todos saibam que Ele nos ama e que todos os filhos pródigos sejam impelidos a regressar à casa do Pai. Assim oramos, expressando o nosso desejo de que Ele seja conhecido e reconhecido em plena crise.

Venha a nós o Teu Reino
Seja feita a Tua vontade, assim na terra como no céu

Jesus desafia-nos a pedir ao Pai que a transcendência em que Ele habita possa invadir a nossa realidade. Na cosmovisão cristã, a transcendência e a imanência de Deus não são mutuamente exclusivas. Deus opera numa realidade que extravasa a nossa realidade mas sem deixar de se fazer presente nesta mesma realidade. Por isso, a espiritualidade cristã não consiste na procura de uma transcendência que se eleva acima das circunstâncias; o caminho que Jesus propõe não passa por fugir ao momento presente, nem à condição humana. (Ainda vamos a tempo de incorporar na fé cristã a crítica justa de Nietzsche aos homens que “crêem em além-mundos” e que “menosprezam o corpo e a terra”.)

A oração de Jesus desafia-nos a trocar o desejo de fuga (que vive na constante ansiedade de sermos nós a ir para o céu) pela expectativa de virmos a experimentar uma maior densidade do céu na terra. Não pedimos a nossa ida, mas pedimos que o Reino venha. Ora o Reino já veio e veio precisamente por meio daquele que nos ensinou a orar assim. Nos evangelhos, o Reino confunde-se com o próprio Rei, uma vez que Jesus, ao proclamar o Reino, está, na realidade, a proclamar-se a si mesmo (ver, por exemplo, Mateus 12:28). 

Voltamos ao B-A-BÁ da mensagem cristã: Jesus, sendo Deus, abdicou da sua transcendência, colocou de parte a sua total distinção ontológica, vindo a nós e assumindo a condição humana. O Rei veio a nós como um de nós. Nesse “movimento descendente” da segunda pessoa da Trindade (a que os teólogos chamam kenosis ou esvaziamento) encontramos a essência da acção de Deus para com a humanidade. Detectamos a vontade do Pai, antes escondida no segredo do céu, agora revelada no tempo, no espaço, no corpo, na matéria terrestre. A incarnação – que já é, pelo menos de forma parcial, a vinda do Reino – mostra-nos que Deus está em missão! Uma missão de resgate (Marcos 10:45), uma missão pela vida (João 10:10).

A “vontade” do Pai é que os seus filhos sejam imitadores do Rei e que estejam também em missão. Por estes dias, o exemplo de serviço e de abnegação que Jesus assumiu é replicado por aqueles que estão na linha da frente do combate à doença e aos seus efeitos: médicos, enfermeiros, pessoal hospitalar, também governantes e muitos outros em funções vitais de rastreio, abastecimento e vigilância (incluindo os cidadãos anónimos que, nos seus prédios e bairros, procuram ajudar e socorrer pessoas em situação de risco). Orar pelo Reino é orar pelo sucesso, pelo ânimo e pela renovação de forças destes nossos irmãos envolvidos em missões de resgate, em profunda abnegação. Orar pelo Reino é pedir que a transcendência de Deus invada a nossa realidade multiplicando os frutos de todos os esforços feitos nesta missão pela vida.

O pão nosso de cada dia dá-nos hoje

Jesus ensina-nos uma espiritualidade enraizada no tempo e no espaço. O hoje é o tempo que nos é dado. Talvez o hoje seja a maior lição que podemos aprender no decorrer desta crise. Habituados a viver de planeamento e a exercer máximo controle sobre todos os aspectos das nossas vidas quotidianas, somos agora forçados a “viver um dia de cada vez” (como se noutras circunstâncias fosse possível viver de outro modo!). 

Na nossa azáfama moderna não nos damos conta de que o grau de controle que temos sobre as nossas vidas quotidianas é um enorme privilégio. Nem sempre foi assim ao longo da história. Importa lembrar que aquele que nos ensinou a oração focada no hoje experimentou ele próprio a imprevisibilidade da vida quotidiana (Mateus 8:20) e desafiou os seus discípulos a fazer o mesmo (Mateus 10). Paulo, que levou o desafio à letra, foi açoitado diversas vezes, preso outras tantas, sofreu naufrágios, passou por fome, sede, frio e nudez (2 Coríntios 11 – suponho que as Bíblias que pregam prosperidade vêm sem este texto). A imprevisibilidade quotidiana era marca característica da vida cristã, pelo que o repto do Senhor Jesus seria decerto um lema diário: “não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo” (Mateus 6:34). 

Da mesma forma que a espiritualidade cristã não é uma fuga para nos elevarmos acima das circunstâncias presentes – acima do “espaço,” digamos – também não é uma fuga para nos elevarmos acima do tempo. É ao aqui e ao agora que somos chamados. 

Na nossa azáfama moderna não nos damos conta de que o grau de controle que temos sobre as nossas vidas quotidianas é um enorme privilégio. Um privilégio que nem todos tiveram ao longo da história e um privilégio que nem todos têm hoje. Noutras regiões do mundo, e noutras regiões das nossas cidades, muita gente vive ainda um grau de imprevisibilidade constante que nós habitualmente ignoramos. Pode esta crise abrir-nos os olhos e os corações, tornar-nos mais gratos pela segurança que temos e mais solidários para com aqueles que não a têm.  

Sobre o pão: é, mais uma vez, o pão nosso. A oração do Senhor remete-nos continuamente para a dimensão horizontal da fé. Não reclamo o meu pão, pois o Reino não se centra nos meus direitos, nem nas minhas necessidades. O pão é nosso: há que reconhecer o direito e a necessidade do meu irmão e há que repartir o pão generosamente. Uma aplicação prática e imediata deste princípio para os nossos dias: cada vez que recorremos ao supermercado, há que pensar em quem virá depois de mim. Ter a despensa repleta enquanto o meu irmão não tem pão é a negação do Reino. Orar pelo pão nosso para hoje é, também, tornarmo-nos disponíveis para sermos resposta a essa oração: repartindo, doando, sendo solidários na redistribuição do pão; se tivermos uma horta fértil ou uma despensa cheia, deixar que os amigos a ela recorram (como bem sugeriu a DGS, ainda que por linhas tortas).

Finalmente, talvez possamos ainda pensar no significado metafórico do pão, uma vez que “nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus” (Mateus 4:4). Atravessaremos semanas de incerteza e cada dia trará os seus desafios e as suas necessidades. Haverão dias em que precisaremos de paz; noutros precisaremos de ânimo; noutros precisaremos de cuidados médicos; noutros precisaremos de consolo; noutros precisaremos de esperança. Que saibamos pois identificar a cada dia – a cada hoje –  aquilo de que a nossa alma carece e que saibamos pedir esse alimento diário ao Pai. Mais uma vez, que saibamos também ser resposta diária para o pão que os outros pedem: que saibamos ser consolo, força e ânimo para aqueles com quem contactamos consoante a sua carência diária.

E perdoa-nos as nossas ofensas como também nós perdoamos a quem nos tem ofendido

Estarmos confinados às nossas casas, em constante interação com as nossas famílias, provocará certamente tensões. É uma situação que tem o potencial de trazer à tona conflitos não tratados, ofensas do passado e feridas por sarar. Acrescem ainda as tensões inerentes à situação que vivemos globalmente, pois o medo, o stress e a impaciência podem assaltar-nos e contagiar quem está à nossa volta.

A oração de Jesus convida-nos a praticar a graça. Somos desafiados a perdoar e é urgente que aceitemos este desafio diariamente em todos os dias que se avizinham. É fulcral que a graça – a dádiva do perdão – se faça presente nos nossos lares. Se nos abrirmos à graça, esta crise fortalecerá as nossas famílias e a nossa sociedade. Fará de nós uma irmandade mais bela.

Como incentivo à prática da graça, Jesus deixa-nos a certeza de que a experiência da graça divina sucede à experiência da graça humana: “porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial vos perdoará a vós” (Mateus 6:14). Ao abrirmos o nosso coração ao perdão humano, abrimo-lo também à graça divina. A graça divina não nos assalta pela força, mas aproveita a mais ínfima abertura para plantar sementes que, devidamente regadas, florescerão. Se nos perdoarmos uns aos outros (começando por aqueles que estão a viver este flagelo debaixo do mesmo tecto) podemos orar pedindo a graça do Pai certos de que essa graça será concedida e aperfeiçoará a nossa frágil graça humana.

Encaremos, pois, este confinamento como uma oportunidade de recentrar a espiritualidade cristã na vida quotidiana em família. Às vezes parece que é mais fácil ser cristão (ser gracioso) com desconhecidos do que com aqueles que nos são próximos. Parece que é mais fácil ser cristão com alguém com quem temos uma interação esporádica do que com aquele/a que dorme na mesma cama que nós. Pura ilusão. Porque a espiritualidade cristã só é verdadeiramente cristã se for uma espiritualidade incarnada (no aqui e no agora) nas circunstâncias específicas da vida quotidiana de cada um, começando pelo amor pelo cônjuge, pelos filhos e por aqueles que nos são mais próximos.

Ainda uma outra observação: a palavra “ofensas” resulta de um termo grego empregue em Mateus 6:12 que significa, literalmente, “dívidas.” Daí que uma tradução alternativa seja: “e perdoa-nos as nossas dívidas como também nós perdoamos aos nossos devedores.” Talvez faça sentido sugerir que esta tradução assume um significado especial no momento que atravessamos. Ao flagelo da doença acresce a situação económica de extrema complexidade; neste contexto, poderemos ser desafiados a perdoar dívidas no sentido literal de forma a que o pão chegue a mais mesas. Também nesse registo, a graça divina acompanhará e adensará o perdão ao nível humano. 

E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal

Por estes dias as tentações são variadas. Somos tentados pelo desespero, pelo medo, pelo instinto de sobrevivência que nos pode levar a pensar apenas em nós mesmos e a desconsiderar os irmãos. Somos tentados a partilhar fake news ou teorias da conspiração. Podemos ser tentados a desconsiderar as regras e recomendações definidas pelas autoridades de saúde, colocando assim outros em risco. Podemos ser tentados a avançar explicações teológicas absolutas, plenas de julgamento e parcas em graça. (Pseudo teodiceias que padecem de míopia por resultarem de uma teologia desfasada do modelo incarnacional e kenótico de Jesus Cristo.)   

E podemos ser tentados de formas já aqui alinhavadas: alimentando o desejo de fuga, em vez de assumirmos a vida quotidiana enraizada nas circunstâncias actuais; acumulando nas nossas despensas o pão que devia ser nosso e dos outros; vivendo ansiosos no que respeita ao amanhã esquecendo que é o hoje que nos é dado; resistindo à prática da graça, enclausurando-nos na mágoa e no orgulho…

A oração de Jesus – uma oração centrada no aqui e no agora – convida-nos a reconhecer que somos tentados hoje e convida-nos a discernir essas tentações quotidianas. A força das tentações esvazia-se parcialmente quando as reconhecemos diante do Pai (muitas vezes é o segredo que adensa o fascínio que as tentações exercem). E ainda que a força de algumas tentações prevaleça, contaremos com o fortalecimento e a graça do Pai. (E ainda que cedamos a algumas tentações, pratiquemos o pedir e o conceder perdão conforme orámos no ponto anterior.)

Pedimos também ao Pai que nos livre do mal. E este pedido parece absolutamente contraditório no momento actual. O mal não é precisamente aquilo que desabou sobre nós? Pedir ao Pai para nos livrar do mal não é equivalente a pedir que nos permita a fuga para fora desta realidade?

Não necessariamente. O exemplo daquele que nos ensinou a orar indica que o mal desta oração não se confunde com as más circunstâncias em que nos encontramos. Também ele experimentou a condição humana e as más circunstâncias inerentes à mesma – incluindo desprezo, tortura, morte. Nenhum de nós está livre desses males; nenhum de nós está imune ao coronavírus. O mal para o qual pedimos o livramento do Pai é o mal que resulta da cedência às tentações. É o mal que se instala quando não reconhecemos que o Pai é pai de todos. É o mal do ego, da ausência de solidariedade, partilha e perdão. O mal que se adensa quando promovemos os valores contrários aos valores do Reino. Que o Pai nos livre, pois, de adicionarmos esses males ao mal que commumente enfrentamos. 

Porque Teu é o reino, o poder e a glória para sempre.

A doença parece reinar por ora. Parecem reinar também o caos e o desespero. Mas, chegados aqui, sabemos que toda a oração que Jesus nos ensina é uma reafirmação da presença do Reino do Pai nas circunstâncias actuais, no aqui e no agora, ainda que o aqui e o agora sejam duros. A doença e a morte são realidades que temos de enfrentar presentemente. São as circunstâncias sobre as quais temos pouco ou nenhum controle. Mas, uma vez que o transcendente se faz presente na nossa realidade, não são a doença e a morte que ditam quem somos ou o que fazemos. A experiência do Reino aqui e agora desperta em nós a esperança e lembra-nos que o coronavírus não terá a última palavra, “não será o fim” (cf. Marcos 13:7 como lembrou recentemente o Andy Crouch). O Reino é do Pai, Ele tem a última palavra. E a última palavra já foi proferida: foi dada na madrugada do primeiro dia da semana quando o Rei ressuscitou. Por isso, em antecipação, podemos juntar-nos ao apóstolo Paulo que, meio em jeito de troça, lançava a questão: “onde está, ó morte, a tua vitória?” (1 Coríntios 15:55).

Porque o reino, o poder e a glória são, para sempre, do Pai, podemos ter ânimo no meio da tragédia, podemos sorrir e até rir, podemos abraçar efusivamente aqueles que vivem debaixo do mesmo tecto (e abraçar virtualmente aqueles com quem temos de manter distância física – mas não isolamento social). (Se, por conta de tanto abraço, houver de facto um baby boom daqui a 9 meses, teremos dado um excelente testemunho de esperança, resiliência e fé no meio do caos.)

Repensando Atitudes – Um Ensaio Sobre Cristianismo e Crise Ambiental – Parte 2

Na primeira parte deste ensaio lembrámos acusações feitas ao Cristianismo a respeito da origem da crise ambiental e vimos que essas acusações não sobrevivem a uma rigorosa análise histórica. Daqui em diante, vamos focar-nos na interpretação do mandato cultural. Mesmo concluindo que a acusação de Lynn White é historicamente falaciosa, poderíamos ser levados a pensar que não existe uma forma de interpretar esse mandato que esteja alinhada com as exigências do presente desafio ambiental. Noutras palavras, poderíamos considerar que esse mandamento torna o Cristianismo inapto no que respeita a responder aos desafios atuais, de tal modo que, no fim de contas, Lynn White tinha razão quando pedia uma nova religião. Mostremos, ao invés disso, uma forma de repensar a nossa antiga religião. 

Génesis 1:28 diz-nos que Deus ordenou aos primeiros humanos que “sejam férteis e se multipliquem! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra” (NVI).

Começamos por mencionar que alguns eruditos em Hebraico têm sugerido traduções mais leves para os termos kabash e radah, habitualmente traduzidos como “subjugar” e “dominar.”1 John W. Rogerson, analisando a forma como Norbert Lohfink interpreta este versículo, explica que Lohfink interpreta kabash simplesmente como “colocar a mão sobre algo, no sentido de reivindicar a sua posse” e radah como uma forma de “administração terna e complacente.”2 Mas estas traduções são rejeitadas pela maioria dos eruditos em hebraico. Com base nas ocorrências destes termos no Antigo Testamento, Rogerson afirma que “se kabash significa de facto ‘colocar a mão sobre algo,’ será quase sempre de uma forma hostil” e “o uso de radah aponta inevitavelmente para o sentido de ‘exercer domínio,’ ‘governar,’ ‘controlar.’ ”3

Ellen F. Davis vai ainda mais longe, dizendo que kabash é melhor traduzido como “conquistar,” dando assim a entender que Génesis 1:28 contém ecos de uma ordem divina para a conquista da terra. Mas Davis argumenta que o significado deste mandamento não é tão evidente quanto pode parecer numa leitura superficial, uma vez que ele contém uma ironia subtil que não passaria despercebida à audiência original: se Génesis 1 pertence à tradição sacerdotal, refletindo o período do exílio Israelita, então a audiência ficaria decerto “estupefacta” com o mandamento para conquistar a terra e “desorientada” relativamente ao seu significado.4 De acordo com Davis, kabash “atua como uma sonda, espicaçando a imaginação de um povo que já não estava a habitar tranquilamente na sua terra — quer seja Judá ou o nosso planeta atualmente vulnerável — e levando-os (nos) a uma nova avaliação da situação.”5 Esta interpretação fornece uma aplicação direta de Génesis 1:28 à nossa crise atual, uma vez que a ironia pode representar também para nós um aviso muito eficaz… desde que a consigamos detectar! 

Desta breve análise, concluímos que as implicações de kabash e radah só podem ser eventualmente suavizadas através de uma leitura contextualizada do mandato cultural à luz das histórias da criação que encontramos nas Escrituras, à luz da história de Israel (como é o caso da interpretação de Ellen Davis já referida), e, finalmente, à luz da narrativa una que se vai desenhando nas entrelinhas das Escrituras e que culmina em Cristo. Passo agora a apontar alguns elementos contextuais de Génesis 1 e 2 que contribuem para uma compreensão aprofundada do mandato cultural. Depois, como etapa final do argumento, vamos ampliar o campo de visão e ver como as palavras e o modelo de Cristo podem clarificar o mandato cultural.

Começamos por observar que a história da criação registada em Génesis 1 culmina apenas com o sétimo dia referido em Génesis 2:2-3. Contrariamente a algumas interpretações populares que encaram a humanidade como o ápice da criação, “é o descanso Sabático, não a criação da humanidade, que completa a criação e a eleva à sua plenitude.”6 A posterior instituição do Sábado como um dia semanal de descanso é articulada em conexão com o Génesis 1: os Hebreus são instruídos a descansar no Sábado — incluindo o seu gado! — porque o Senhor também tinha descansado no sétimo dia (Êxodo 20:8-11). O mesmo princípio subjacente pode ser detectado na prática do ano sabático para a terra (Êxodo 23:10-11). Ler a história da criação do Génesis 1 à luz dos múltiplos significados que o Sábado adquire no Pentateuco conduz-nos a duas observações: primeiramente, cumprir o mandato cultural passa por reconhecer os ciclos inerentes à natureza e aos seus recursos, pelo que qualquer tentativa de colocar em prática o mandamento de Deus para subjugar a terra deve respeitar esses ciclos; em segundo lugar, a instituição do Sábado para toda a criação (abrangendo o povo, os animais e a terra) desqualifica interpretações antropocêntricas da história da criação. Em oposição à Declaração de Cornwall, podemos afirmar que “desde o princípio da história bíblica é evidente: o ser humano é uma criatura de entre muitas, e não deve julgar-se a si mesmo, de forma imprópria, como um ‘deus’ sobre o resto da criação… a solidariedade com a criação deve caracterizar a sua cosmovisão e a sua prática.”7 O primeiro Sábado como ápice da criação aponta para uma história que é teocêntrica, em vez de ser antropocêntrica.

Génesis 1:26-27 providencia ainda um outro elemento contextual que aponta para uma história teocêntrica, apesar de ser uma passagem muitas vezes utilizada para argumentar em prole da interpretação oposta. Estes versículos afirmam a imago Dei, i.e., a criação da humanidade à imagem e semelhança de Deus. O significado da imago Dei tem sido vastamente discutido ao longo dos séculos; interpretações particulares, por vezes absurdamente criativas, foram desenvolvidas de forma a argumentar que o ser humano é intrinsecamente e hierarquicamente superior às outras criaturas. Contudo, muitos teólogos hoje concordam que a imago Dei surge no texto bíblico diretamente relacionada com o papel que é atribuído à humanidade na história da criação: “a ‘imagem de Deus’ não é substancial, mas relacional: descreve o nosso chamado singular para nos relacionarmos de forma responsável com Deus, uns com os outros, e com o resto da criação.”8 Assim, a nossa semelhança a Deus é evidenciada precisamente quando cumprimos o mandato cultural de um modo que seja reflexo do carácter do próprio Deus, ligando-se assim ao conceito de mordomia: “domínio deve ser entendido como mordomia — é dessa forma que nós refletimos a ‘imagem’ de Deus.”9

Que o ser humano deve actuar como mordomo da criação torna-se ainda mais evidente se dermos outro passo na nossa análise contextual por meio da comparação de Génesis 1 com Génesis 2.10 O contraponto ao mandato cultural na segunda história da criação é dado em Génesis 2:15: “O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo.” Iain Provan explica que o papel atribuído ao homem aqui é, literalmente, “servir” e “manter/guardar” o jardim.11 Para além disso, de acordo com Provan, o jardim descrito no Génesis 2 é apresentado como um santuário e a tarefa da humanidade — cuidar do jardim — é sacerdotal: “é uma tarefa santa, manter o jardim — um jardim que não nos pertence a nós mas a um outro Ser.”12 Portanto, estas histórias da criação são totalmente teocêntricas, uma vez que Deus é o único agente criador e o papel específico que é atribuído ao ser humano é o de representar o Criador. Assim, o mandamento de Génesis 1:28 é suavizado pela leitura do Génesis 2 e será ainda mais “clarificado” e “revertido” ao longo das Escrituras “num processo que culmina apenas na crucificação de Cristo.”13 Efetivamente, o passo crucial para uma interpretação Cristã do mandato cultural é a sua leitura à luz da obra e ensinos de Jesus Cristo — e é para aí que avançamos agora.

No Sermão do Monte, Jesus proclama de forma provocativa que os mansos são bem-aventurados pois eles herdarão a terra (Mateus 5:5). Jonathan R. Wilson chama a nossa atenção para este versículo, observando com pertinência que “é surpreendente quão pouco se escreve a propósito desta proclamação na literatura atual acerca da ‘crise ecológica.’”14 De facto, esta bem-aventurança contrasta com uma leitura literal do mandato cultural e, por essa razão, apreender o seu significado é muito relevante para a nossa análise ao tentarmos “clarificar” esse mandato. Wilson expõe esta beatitude à luz de uma abordagem dialéctica que mantém unidas a criação e a redenção, ao invés de dissociar estas duas obras de Deus. No âmbito dessa abordagem, mansidão é definida como “poder sob controle,” exercido em cada situação em harmonia com o “contexto específico e o seu telos” no contexto de uma “criação que está em processo de redenção.”15 De acordo com Wilson, mansidão não implica “passividade” nem “exploração complacente da natureza,” antes consiste numa “forma de vida gentil, cuidada, e simples” em resposta ao chamado de Jesus; para além disso, é esta mansidão que recebe a promessa de herança da terra — essa promessa não é dada aos avanços da ciência e da tecnologia nem a qualquer outro programa económico.16

Mansidão é, portanto, “a disposição para refrear o poder de tal forma que este esteja alinhado com a redenção da criação em preparação da nova criação.”17 E essa é precisamente a disposição — ou a atitude — que Cristo modela por meio da sua incarnação e crucificação e que é comunicada de forma sublime no hino registado em Filipenses 2:6-11. Portanto, a obra de Cristo está em perfeita harmonia com a Sua proclamação, uma vez que a mansidão à qual ele nos convida foi exemplificada na Sua própria trajectória. O esvaziamento de Cristo — a sua kenosis — expressa de forma absoluta a Sua disposição para restringir o Seu próprio poder e torna-se o paradigma da forma Cristã de administrar as coisas terrenas e participar na redenção do mundo.

A luz que a incarnação e a crucificação lançam sobre Génesis 1:28 enfraquece, de uma vez por todas, as leituras antropocêntricas desse texto. O Criador fez-se um de nós para nos mostrar que “aquele que quiser ser o primeiro, [deve ser] o último e servo de todos” (Marcos 9:35); em conformidade, “todas as nossas acções deveriam ser conduzidas pelo exemplo do uso de domínio que Cristo nos dá.”18 Assim, se quisermos imaginar uma representação hierárquica da criação à luz de um entendimento cristocêntrico do mandato cultural, essa hierarquia terá de ser baseada no serviço, em vez de ser baseada no “valor” (ao contrário daquilo que lemos na Declaração de Cornwall). Ainda, ao aplicarmos a atitude de Cristo, teremos de colocar a humanidade na parte inferior da hierarquia, ao serviço da criação (em claro contraste com a hierarquia implícita em Lactantius, Gary North ou Calvin Beisner).19 Note-se que a humanidade teria de carregar o peso de toda a criação se esta representação hierárquica não incorporasse nenhum outro elemento. Esse seria inegavelmente um fardo impossível — um fardo que, de facto, os ativistas ambientais parecem sentir e que muitas vezes os conduz ao desespero. Mas o elemento mais importante (aquele que de facto sustenta esta hierarquia) ainda está ausente da nossa representação: o que a história da redenção nos mostra é que é o próprio Cristo quem assume o fardo, colocando-se a Si mesmo abaixo da humanidade e de toda a criação — “é ele quem sustenta o universo pela sua palavra poderosa” (Hebreus 1:3, BPT).

Ao concluirmos este ensaio, é necessário confessarmos que os Cristãos “têm ignorado quase na totalidade a aplicação da ‘atitude de Cristo’ ao tratamento do mundo natural.”20 Apesar disso, é precisamente esta abordagem cristocêntrica que reverte claramente as leituras antropocêntricas do mandato cultural e que melhor exibe a compatibilidade entre a fé Cristã e a necessária resposta à presente crise ambiental. Se a nossa abordagem foi bem sucedida na demonstração dessa compatibilidade, então também ficou demonstrado que não é necessário fundarmos uma nova religião. Contudo, precisamos certamente de repensar a antiga religião, insistindo, vez após vez, que tanto a teologia quanto a praxis têm de ser modeladas por Cristo, pois “todas as coisas foram feitas por meio dele” e “é ele que dá consistência a tudo o que existe” (João 1:3, Colossenses 1:17).

Notas:

  1. Por exemplo: Brennan, 4.
  2. Rogerson, 24.
  3. Ibid, 25.
  4. Ellen F. Davis, Scripture, Culture and Agriculture: An Agrarian Reading of the Bible (New York: Cambridge University Press, 2009), 59-60. Davis faz aqui uso da hipótese documental segundo a qual o Pentateuco agrega quatro fontes distintas. A tradição sacerdotal diz respeito à chamada fonte P (Priester), uma fonte considerada tardia pelos proponentes desta hipótese.
  5. Ibid.
  6. Iain Provan, Seriously Dangerous Religion: What the Old Testament Really Says and Why It Matters, (Wako: Baylor University Press, 2014), 223.
  7. Provan, 223-4.
  8. Peter De Vos et al., Earthkeeping in the Nineties: Stewardship of Creation, (Grand Rapids: Eerdmans, Rev. ed., 1991), 285.
  9. Ibid., 289. No inglês é utilizado o termo ‘stewardship,’ sendo ‘mordomia’ uma possível tradução para português (que nos parece ficar aquém do significado mais profundo do termo inglês).
  10. Optamos por manter a comparação dentro do cânon bíblico de forma a não estendermos em demasia este texto, mas vale a pena observar que também se obtém uma leitura muito pertinente de Génesis 1 por meio da comparação com mitos criacionistas do Antigo Oriente Próximo, como é feito em: Jonathan R. Wilson, God’s Good World: Reclaiming the Doctrine of Creation, (Grand Rapids MI:Baker Academics, 2013), 164-70.
  11. Provan, 224.
  12. Ibid.
  13. De Vos et al., 287.
  14. Jonathan R. Wilson, God’s Good World: Reclaiming the Doctrine of Creation. Grand Rapids: Baker Academics, 2013, 226.
  15. Ibid, 226-7.
  16. Ibid., 233-4.
  17. Ibid., 229.
  18. De Vos et al., 295.
  19. Ver a primeira parte do ensaio para enquadrar as referências à Declaração de Cornwall, Gary North, Calvin Beisner e Lactantius.
  20. De Vos et al., 296.

Repensando Atitudes – Um Ensaio sobre Cristianismo e Crise Ambiental – Parte 1

Repensando Atitudes — Um Ensaio sobre Cristianismo e Crise Ambiental1

Parte 1

“Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus… 
adoptando a condição de servos.”2

“O estado do nosso planeta não é bom. A terra está a gemer.”3 Este eco de Romanos 8:22 é o veredicto de Steven Bouma-Prediger após analisar vários desafios ambientais com que nos deparamos atualmente. Enfrentamos uma crise ambiental de proporções globais que obriga a uma reflexão urgente e a respostas imediatas. Este veredicto é o nosso ponto de partida e não nos deteremos a justificá-lo: há abundante literatura que o faz, da qual é exemplo a já citada obra de Bouma-Prediger. O propósito do presente ensaio é outro: perguntamo-nos se é possível responder a esta crise a partir de uma cosmovisão cristã. Na primeira parte do ensaio relembro acusações feitas ao Cristianismo a respeito da origem da crise ambiental e analiso em que medida é que essas acusações se ajustam à história da nossa civilização. A segunda parte do ensaio foca-se na interpretação do chamado ‘mandato cultural’ de Génesis 1:28 — um texto controverso no âmbito do debate teo-ecológico. Qual é o significado e quais são as implicações do mandamento de Deus para que exerçamos domínio sobre a criação e subjuguemos a terra? Será que este mandamento pode ser entendido e vivido de forma compatível com a necessidade de responder aos severos problemas ambientais do nosso tempo? O meu objetivo é demonstrar essa compatibilidade, trazendo à conversa contribuições de diversos teólogos contemporâneos de forma a esboçar uma interpretação do mandato cultural que seja sólida, contextualizada e cristocêntrica.4

A acusação de que o Cristianismo “carrega uma enorme carga de culpa” a respeito da crise ambiental pode ser rastreada até ao ensaio escrito por Lynn White e publicado na revista Science em 1967.5 Ganhou fama a acusação de que a presente crise ecológica é consequência do antropocentrismo inerente à história da criação Judaico-Cristã. De acordo com White, as nossas vidas atualmente ainda se baseiam, em grande medida, num axioma Cristão que afirma que “Deus planeou toda a criação explicitamente para benefício e domínio humano.” Como forma de ultrapassar este alegado paradigma, White propôs que “encontrássemos uma nova religião ou que repensássemos a antiga.”

A acusação de Lynn White foi posteriormente desenvolvido por vários autores e hoje ainda escutamos os seus múltiplos ecos na praça pública, vindos, por exemplo, de ativistas ambientais. Paul Watson, co-fundador da Greenpeace, é um exemplo óbvio: Watson tem levado a sério a sugestão de White, advogando publicamente contra o Cristianismo (e contra qualquer outra forma de religião tradicional) e propondo, em alternativa, uma “religião biocêntrica.”6 Por outro lado, também tem sido argumentado que a acusação de White é enganadora, uma vez que “as reconstruções da história das ideias em relação à alegada responsabilidade do Cristianismo pela crise ecológica não podem permanecer simplistas e unidimensionais se quiserem ser convincentes, e se quiserem de facto contribuir de forma construtiva para o debate ecológico.”7 John W. Rogerson afirma que a mudança fundamental da pré-modernidade para a modernidade ocorreu quando Descartes propôs a razão como árbitro para determinar a verdade. De acordo com Rogerson, foi o pensamento cartesiano que originou uma transformação no nosso entendimento da natureza que, tendo tido origem na cultura Cristã daquele tempo, acabou por sofrer uma “mutação” tornando-se uma cosmovisão secular. Robert Brennan também localiza a ideia moderna de domínio sobre a natureza no sonho Iluminista do Progresso e não no Cristianismo.8 Para além disso, Brennan analisa uma amostra de abordagens teológicas ao longo da história e conclui que, “ao invés de ser um eco-vilão, o pensamento Cristão tradicional tem encorajado uma cuidadosa reflexão sobre a natureza e o cuidado da mesma.”

Neste ponto somos forçados a colocar a seguinte questão: será que, com Brennan, podemos afirmar de forma tão taxativa que a teologia Cristã tem sido maioritariamente benigna ao longo da história quando aborda questões ambientais? Uma análise histórica detalhada está fora do âmbito deste ensaio, mas podemos tecer duas considerações adicionais a propósito da conclusão de Brennan. Em primeiro lugar, é justo mencionar que encontramos na tradição Cristã exemplos de atitudes virtuosas para com a criação. O próprio Lynn White aponta para um desses exemplos ao recordar a praxis de Francisco de Assis e ao propor “Francisco como um santo padroeiro para os ecologistas.”9 Encontramos na Grã-Bretanha do século XIX outro exemplo inegável, quando a prática de vivissecção de animais “provocou uma campanha anti-vivissecção que foi liderada por Cristãos e que fez uso de argumentos baseados na fé cristã para se opor à vivissecção.”10 Em segundo lugar, temos de reconhecer que a conclusão de Brennan não permanece intacta se a compararmos com todo o espectro de interpretações históricas do mandato cultural, desde os Pais da Igreja até aos nossos dias. As interpretações mais antigas eram claramente hierárquicas e antropocêntricas, como ilustra Lactantius (AD 260-330): “mais uma vez, o facto de que os outros seres viventes foram feitos por causa do homem resulta obviamente disto: eles são subservientes ao homem e foram dados para a sua proteção e serviço.”11 Num comentário acerca da forma como os primeiros Cristãos interpretavam o termo “domínio,” Morwenna Ludlow afirma que “é difícil perceber como é que os Cristãos dessa era poderiam ter ido além de uma teologia antropocêntrica” uma vez que eles faziam equivaler a imago Dei à faculdade da razão humana; nesse sentido, eles incorporaram no pensamento Cristão uma ênfase na racionalidade que vinha do mundo Greco-Romano.12

Temos de ter em consideração que esses teólogos de outra era não enfrentavam as ameaças ambientais a nível global que nós hoje enfrentamos; por essa razão, a teologia deles nunca foi desenvolvida sob o desafio de dar resposta a essas ameaças — mas a nossa é! Neste sentido, devemos reconhecer que a teologia contemporânea tem trazido interpretações frescas do mandato cultural; iremos abordá-las em breve. Mas também devemos reconhecer que as abordagens antropocêntricas ainda podem ser encontradas na teologia Cristã contemporânea. Por exemplo, num “comentário económico” e pós-milenista ao livro de Génesis, Gary North fala de uma “ordem fundamental nos processos da criação” afirmando que “o sol, a lua, e as estrelas possuem uma regularidade que serve os propósitos do homem e, de uma maneira subordinada, das outras criaturas da terra.”13 Calvin Beisner, argumentando a favor de uma economia de mercado livre, reitera que “o mandamento de domínio significa claramente que a terra, com tudo o que nela há… foi planeada por Deus de forma a servir as necessidades humanas.”14 Para além disso, em 2000, a Cornwall Alliance, lobby de cariz Cristão, emitiu uma declaração que argumenta em prol da economia de mercado, demonstra cepticismo relativamente aos problemas ambientais, e afirma que “a pessoa humana é o recurso mais valioso do planeta terra.”15 Não nos iremos debruçar de forma prolongada acerca destas abordagens, mas podemos tecer duas curtas considerações sobre as mesmas: em primeiro lugar, a abordagem que iremos esboçar em seguida difere destas de forma vincada (e responde-lhes  implicitamente); em segundo lugar, estas abordagens negam a confissão e o arrependimento que o Cristianismo tem em dívida “porque apesar de a fé Cristã não ser necessariamente anti-ecológica, temos agido demasiadas vezes como se o fosse.”16

Daqui em diante, vamos focar-nos na interpretação do mandato cultural. Mesmo concluindo que a acusação de Lynn White é historicamente falaciosa, poderíamos ser levados a pensar que não existe uma forma de interpretar o mandamento divino que esteja alinhada com as exigências do presente desafio ambiental. Noutras palavras, poderíamos considerar que esse mandamento torna o Cristianismo inapto no que respeita a responder aos desafios atuais, de tal modo que, no fim de contas, White tinha razão quando pedia uma nova religião. Mostremos, ao invés disso, uma forma de repensar a nossa antiga religião. 

 

Notas:

  1. Este ensaio faz uso de fontes que consistem em textos originalmente publicados em língua inglesa. As citações foram traduzidas para português pelo autor do ensaio e qualquer imprecisão que resulte dessa tradução é da exclusiva responsabilidade do mesmo.
  2. Filipenses 2:5,7.
  3. For the beauty of the earth – a Christian vision for creation care, (Grand Rapids: Baker Academic, 2nd ed., 2010), 54.
  4. Cabe aqui uma nota para reconhecer que o Cristianismo contempla várias formas de abordar a Bíblia e que as questões aqui colocadas poderão nem fazer sentido para algumas correntes cristãs. Contudo, procura-se aqui uma abordagem que possa ter pontos de contacto com a teologia evangélica que tende a encarar a Bíblia como “única regra de fé e prática.” Para além disso, mesmo as abordagens cristãs que revelam maior grau de flexibilidade no trato da Bíblia têm esta, em princípio, como alicerce principal na formação da cosmovisão e praxis. Assim, a questão da interpretação do mandato cultural será também relevante no âmbito dessas abordagens.
  5. Lynn White, “The Historical Roots of Our Ecological Crisis”, Science 155, (1967): 1203-7.
  6. Paul Watson, “Biocentric Religion – A Call For,” in Encyclopedia of Religion and Nature, (ed.) Bron Taylor (New York: Continuum, 2005), 176-9.
  7. John W. Rogerson, “The Creation Stories: Their Ecological Potential and Problems,” in Ecological Hermeneutics: Biblical, Historical and Theological Perspectives, (ed.) David G. Horrell et al. (New York: T&T Clark International, 2010), 24.
  8. Robert Brennan, “Dominion over Nature – Is traditional Christianity really the eco-villain?” in Christian Perspectives on Science and Technology, (ISCAST Online Journal, Vol. 14, 2010), 9.
  9. White, 1207.
  10. David L. Clough, On Animals, vol. I: Theological Ethics (London: T&T Clark, 2019), 139.
  11. Citado em: Ronald E. Manahan, “A Re-examination of the Cultural Mandate: An Analysis and Evaluation of the Dominion Materials,” PhD diss., (Grace Theological Seminary, 1982), 19. Esta dissertação inclui um extensivo repositório de interpretações históricas do mandato cultural.
  12. Morwenna Ludlow, “Power and Dominion: Patristic Interpretations of Genesis 1,” in Ecological Hermeneutics: Biblical, Historical and Theological Perspectives, (ed.) David G. Horrell et al. (New York: T&T Clark International, 2010), 151. Voltaremos mais adiante à questão da Imago Dei.
  13. Gary North, The Dominion Covenant: Genesis. An Economic Commentary on the Bible, Vol 1 (Tyler TX: Institute for Christian Economics, Rev. ed., 1987), 32.
  14. Calvin E. Beisner, Prospects for Growth: A Biblical View of Population, Resources and the Future, (Westchester IL: Crossway Books, 1990), 163.
  15. Cornwall Alliance, “The Cornwall Declaration On Environmental Stewardship,” (Burke, VA: Cornwall Alliance, 2000). Note-se que estas referências não pretendem dar a entender que as conclusões teológicas destes autores sofrem de um viés ideológico em defesa do status quo económico. Faz-se apenas menção ao facto de North, Beisner e a Cornwall Alliance inserirem as suas considerações antropocêntricas e ecológicas no âmbito de argumentos económicos. Aferir um eventual viés requereria uma leitura mais cuidada destes autores e uma crítica mais aprofundada.  
  16. Bouma-Prediger, 71.

 

Mais lágrimas e menos hashtags

Aproximando-se ainda mais, Jesus contemplou Jerusalém e chorou sobre ela, dizendo: Oh! Se também tu, ao menos neste dia que te é dado, conhecesses o que te pode trazer a paz!… Mas não, isso está oculto aos teus olhos. Virão sobre ti dias em que os teus inimigos te cercarão de trincheiras, te sitiarão e te apertarão de todos os lados; destruir-te-ão a ti e a teus filhos que estiverem dentro de ti, e não deixarão em ti pedra sobre pedra, porque não conheceste o tempo em que foste visitada.

A atualidade política do Brasil é chocante e estarrecedora. É muito difícil compreender como é que um sujeito como Bolsonaro conseguiu capitalizar o descontentamento do povo e granjear um apoio massivo e até agressivo. Bolsonaro está há décadas na política e tem como amostra do seu serviço público um conjunto de boçalidades e de tiradas populistas que, tudo somado, resultam num enorme vazio. O seu currículo político é feito de coisa nenhuma. Em 27 anos como deputado federal pelo Rio de Janeiro conseguiu fazer aprovar 2 projetos de lei. Promete agora resolver os graves problemas de segurança pública à escala nacional, mas não se lhe conhece nenhuma iniciativa que tenha dado frutos no combate à insegurança crescente na cidade carioca. O seu discurso político é composto pelas tais boçalidades – dignas das piores sarjetas em que se tornam as caixas de comentários das redes sociais – pelos ataques às minorias e por promessas “políticas” tecidas cuidadosamente para alimentar o combustível da turba que lhe dá ouvidos. Promessas – como a do armamento da população – feitas à medida daqueles que, demasiado desgastados com a história recente da nação, estão prontos a trocar a lucidez e a elevação por um prato de lentilhas. Quando se trata de falar de política a sério, Bolsonaro engasga-se e demonstra o seu total despreparo e desconhecimento.

Num clima de desinformação e fake news constantes, que circulam descontroladas à velocidade do whatsapp, foi este mesmo Bolsonaro quem recebeu o voto do povo; mesmo havendo alternativas muito válidas que não passavam pelo regresso do tão famigerado PT. É, de facto, muito difícil compreender como é que um povo se rende assim ao populismo barato e agressivo. Em termos objetivos, não há nada em Bolsonaro, na sua postura, no seu percurso e nas suas promessas, que justifique a crença de que com ele o Brasil irá melhorar. Ainda assim, os brasileiros preparam-se para o conduzir em ombros até ao cargo mais importante da República. Não apenas se preparam para o eleger, mas, aqueles que o apoiam, fazem-no num ambiente de triunfalismo, concedendo-lhe um estatuto de herói (“o mito“) como se ele fosse Messias não só de apelido, mas de facto. (Um tal messianismo despropositado deveria ser um forte sinal de alerta para o povo, até porque um messianismo da mesma espécie caracterizou (e continua a caracterizar) a atitude de uma parte dos brasileiros para com Lula da Silva.)

Os resultados da primeira volta vão ditar uma polarização ainda mais extremada e reconheço que o eleitor brasileiro se deparará com uma escolha muito difícil no próximo dia 28 de Outubro. Por isso, no limite, posso agora compreender que, em desespero, o eleitor escolha qualquer uma das opções como o mal menor. A minha compreensão não pode, contudo, estender-se ao tal triunfalismo que se criou em torno de Bolsonaro. Mesmo que, em comparação com o PT, ele venha a ser considerado o menor dos males pela maioria da população, Bolsonaro será sempre um mal. E o mal menor não se escolhe de punho erguido e de coração alegre. O mal menor é, ainda, mal. Só faz sentido escolhê-lo de lágrimas nos olhos.

Abro aqui um parêntesis para explicar que não sou brasileiro, pelo que me faltam certamente elementos para compreender a complexidade do ambiente social do Brasil. Assim, reconheço que talvez fosse mais prudente guardar esta análise para mim próprio. Contudo, sou cristão e é sobretudo a perspetiva cristã que me motiva a escrever e a partilhar o presente texto. É a análise do fenómeno Bolsonaro por meio da lente cristã que mais me constrange e me causa perplexidade.

É com profunda tristeza e choque que vejo os meus irmãos, companheiros no caminho de Cristo, seduzidos pelo populismo fácil e embarcados a bordo do triunfalismo oco (e mesmo sendo esta uma análise que resulta do fenómeno Bolsonaro, reconheço, desde já, que a mesma sedução opera também no lado oposto do espectro político). A deturpação do caminho cristão já não surpreende vinda de sumidades como o Edir Macedo e outras figuras proponentes das corruptas teologias que assolam o nosso mundo e, em particular, o Brasil. Mas a forma como se viveu o processo eleitoral nos media e nas redes sociais demonstra que essa deturpação alastrou rapidamente, sem barreiras e sem contenção, aos cristãos de outras esferas.

O Novo Testamento ensina-nos que o caminho de Cristo não passa pela via do triunfalismo. Ainda que a esperança final do cristão assente no triunfo da vida sobre a morte – triunfo esse que já foi garantido por meio da ressurreição de Cristo como Paulo descreve de forma tão eloquente em I Coríntios 15 – a caminhada cristã no presente século (para usar uma expressão neotestamentária), num mundo sujeito aos poderes instituídos, não é uma caminhada triunfal. Quando o mesmo Paulo diz, na carta aos Romanos, que “somos mais que vencedores” não está a proclamar vitória sobre as circunstâncias temporais. Pelo contrário, o contexto dessa afirmação mostra que Paulo está precisamente a reconhecer que a missão cristã é feita sob circunstâncias difíceis e que não é expectável que essas circunstâncias se desvaneçam. A vitória de que Paulo fala é a vitória final garantida pelo calvário e pelo sepulcro vazio e que torna possível experimentar o amor de Cristo mesmo no meio das mais terríveis circunstâncias. Não se trata de uma vitória imediata sobre a realidade temporal, pois a fome, a perseguição, a tortura e a injustiça continuam a ser realidades bem palpáveis para Paulo e para os seus contemporâneos.

Não cabe neste texto uma perspetiva teológica mais detalhada sobre a relação do cristão com a política. A título de exemplo, remeto o leitor interessado neste tema para as obras The Politics of Jesus, de John Howard Yoder, e The Gospel in a Pluralist Society, de Leslie Newbigin (em especial o capítulo 16).

Mas cabe-me sugerir, com veemência, que o caminho de Cristo será sempre o caminho descendente tão cruamente delineado no hino registado em Filipenses 2:5-11. Aqueles que com Cristo caminham não podem deixar de escutar o repto de Paulo que antecede esse mesmo hino: “que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus”. Esse repto não é mais do que um resumo do ensino do próprio Cristo: carregar a cruz, dar a outra face, amar os inimigos.

A relação do cristão com o poder temporal tem sido diversa ao longo dos séculos, sendo possível adotar diferentes linhas de pensamento sobre a participação cívica e política que o crente pode ou deve assumir. Mas, independentemente da perspetiva que cada um de nós venha a adotar e do grau de envolvimento que cada um venha a assumir no cuidar da pólis, eis um ponto de partida que me parece incontornável: as lágrimas de Cristo sobre Jerusalém modelam a relação do cristão com o poder temporal. Tal como Jesus – e à semelhança daquilo que sucedeu com Neemias numa era anterior – também nós olhamos o mundo à nossa volta, observamos os caminhos trágicos pelos quais enveredam os nossos vizinhos, os nossos povos e as nossas sociedades, e, antes de mais, somos convocados ao lamento e às lágrimas. “Oh! Se também tu, ao menos neste dia que te é dado, conhecesses o que te pode trazer a paz!”

De olhos marejados, e em resposta às vocações individuais e comunitárias, podemos depois seguir o exemplo de Neemias: mediante os recursos de que dispomos e numa perspetiva de serviço, participamos na reconstrução daquilo que está destruído, dos edifícios que estão por terra. Não ignoramos o papel que podemos desempenhar na edificação de uma pólis que, ainda sujeita às circunstâncias temporais, seja pelo menos um pouco mais bela e um pouco mais justa. E quando possível, essa reconstrução é feita por meio do voto.

Mas todo o processo começa nas lágrimas. Que bom seria se, diante das tragédias que imperam nas nossas sociedades – e, em particular, diante da tragédia que tem sido este processo eleitoral no Brasil – os hashtags baratos e as fake news cancerosas dessem lugar às lágrimas, a começar por aqueles que trilham o caminho de Cristo.

O Contador de Histórias

Os contadores de histórias não eram tão invulgares naquele tempo. Percorriam os povoados para atrair ouvintes e angariar novos aprendizes de tão nobre arte. Por isso, não foi apenas por ser um contador de histórias que ele se distinguiu de forma ímpar. O que lhe granjeou fama e distinção foi o tipo de histórias que contou.

Com mestria, tecia histórias que partiam sempre da realidade palpável, do mundo visível e conhecido, daquilo que era imediato aos olhos dos ouvintes: falava de colheitas, de heranças, de casamentos, de salários, de hábitos sociais. Mas as suas histórias apontavam depois para uma realidade não tão imediata, antecipando novas possibilidades, desbravando uma nova esperança. Era como se as histórias anunciassem que a realidade é maior do que aquilo que vemos; que há História para lá das colheitas, heranças e casamentos; que há caminhos para lá dos becos; que há vida abundante para lá do marasmo.

Muitos dos ouvintes deliciavam-se com as suas histórias inusitadas, bebiam delas o que conseguiam e debatiam entre si o significado. Outros, demasiado ciosos de uma realidade pequena e mais fácil de abarcar, protestavam e queriam calar o contador de histórias.

Assim, seguia-o e ouvia-o uma multidão heterogénea e a todos ele contava as histórias que muitas vezes começavam mais ou menos assim: “Esta realidade de que vos falo é semelhante a um tesouro escondido num campo…”

Exortava os seus ouvintes para que alargassem o entendimento, porque as histórias que contava careciam de uma matriz de pensamento renovada de modo a poderem ser compreendidas, experimentadas e vividas. Comparava as suas histórias a vinho novo que não pode ser contido em odres velhos, ou pano novo que não pode ser costurado num tecido velho, ou software novo que não corre se o hardware estiver ultrapassado.

Chegou mesmo a afirmar que, para compreenderem as histórias e a realidade para a qual elas apontavam, os ouvintes teriam de ser como crianças. As crianças adoram histórias: vivem num mundo de intermináveis possibilidades e encaram com mais naturalidade e credulidade aquilo que parece inverosímil aos adultos.

Dos tais adultos, que o queriam calar, brotou uma conspiração que desembocou em execução. Queriam colocar um ponto final na história do contador de histórias, pois estas já incomodavam em demasia. Porém, sem se darem conta, esse suposto ponto final na história tornou-se ponto central da História. Porque aquele que com tanta mestria contava histórias inusitadas é também aquele que com mestria escreveu a própria História. Aquele que falava de caminhos para lá dos becos é também aquele que inaugurou esses caminhos – ou, noutras palavras, é ele próprio o Caminho. Aquele que contava de uma esperança capaz de exceder as possibilidades mundanas visíveis a olho nu é também aquele que traz para dentro da realidade temporal essa mesma esperança.

Em epílogo, o contador de histórias deixou-nos um repto: “vão por todo o mundo e contem a História; mais ainda, vivam a História e, assim, farão também novas histórias e novos contadores de histórias”.

Os contadores de histórias são mais invulgares no nosso tempo – parece que o mundo tecnocrata tenta asfixiar toda e qualquer história. Mas, para além do repto do contador de histórias que ainda ecoa, é o próprio tempo que nos desafia a contá-las de novo porque o marasmo está instalado por toda a parte. É o próprio tempo que clama pela História.

Realidades Paralelas Há Muitas

Li recentemente ‘O Triunfo dos Porcos’, genial e incisiva alegoria de George Orwell sobre o processo que levou à ascensão de Estaline ao poder e ao seu terrível regime. Na obra, a Rússia Soviética é representada por uma propriedade agrícola na qual os animais são explorados e maltratados pelo homem – o proprietário. Gradualmente, a utopia revolucionária cresce na consciência dos animais até que se dá a revolta destes e a expulsão do proprietário. Os animais procuram depois formas de autogoverno e dão o poder aos porcos – supostamente mais instruídos e preparados. De entre estes, e por meio de intrigas e conspirações, ganha destaque Napoleão: um porco que se deixa corromper pelo poder. Abreviando a história, Napoleão vai exercendo uma opressão cada vez maior sobre os animais da quinta, mas constrói uma realidade paralela, mentindo, deturpando os factos e inventando absurdas teorias da conspiração para garantir que continua a ter lealdade dos animais. Finalmente, acaba por se tornar tão ou mais facínora do que o proprietário inicial da quinta.

Como o próprio Orwell afirma, o conto não é apenas uma sátira à revolução russa mas a todo o género de revolução “violenta e conspirativa, conduzida por pessoas inconscientemente sedentas de poder”. Nas palavras do autor, “a moral da história pretendia ser a de que as revoluções só conduzem a melhorias significativas quando as massas estão alerta e sabem como expulsar os líderes assim que estes cumprem a sua missão”.

A sucessão de acontecimentos em torno do Sporting Clube de Portugal e do seu Presidente ao longo das últimas semanas traz-nos, portanto, uma nova ilustração da alegoria de George Orwell. Impressiona a capacidade que Bruno de Carvalho tem tido de criar uma realidade paralela e impressiona ainda mais a cegueira das massas que nele continuam a crer.

Tendo em conta a história recente do Sporting, aceito que muitos adeptos tenham acolhido o discurso disruptivo e a postura inicial de Bruno de Carvalho como a receita adequada para se verem livres dos anteriores proprietários que não demonstravam amor pelo clube nem respeito pelos adeptos. Contudo, é muito difícil de compreender como é que tantos adeptos continuaram a dizer amém ao líder quando, de forma cada vez mais descarada, este passou a desrespeitar os adeptos e o clube, fazendo-se confundir a ele próprio com a instituição a que preside e minando o futuro desta instituição de forma calamitosa. A reação destes adeptos reproduz um outro elemento brilhante do conto orwelliano: os discursos de Napoleão eram sempre aclamados pelos sonoros balidos de um coro de ovelhas acríticas.

Suponho que haja, neste fenómeno coletivo, uma cegueira que funciona como autodefesa da psique humana contra a dissonância cognitiva: é duro ver o rotundo falhanço daquele em quem antes depositámos tanta fé e, por não termos de lidar com essa dureza, preferimos não ver. Quando investimos totalmente a nossa esperança numa figura que ganha contornos messiânicos, e quando baixamos a guarda e deixamos de estar alerta para a realidade paralela que essa figura procura criar, torna-se muito difícil encontrar o distanciamento que é necessário para vermos a realidade como ela é e abandonarmos a fé nesse messias.

Esta fuga massiva à dissonância cognitiva foi também um dos fatores que contribuiu para que diversos totalitarismos tenham assolado o século XX. Agora, quando julgávamos que os totalitarismos eram tendências do passado, eis que eles ameaçam regressar em força, cavalgando a era das fake news e do incontrolável esgoto das redes sociais. Até o ‘politicamente correto’, que quer inundar o espaço público atual, resulta de uma ideologia totalitária baseada num estilo de policiamento da linguagem que é profundamente orwelliano, pois pretende criar uma realidade paralela. (A realidade descreve-se e interpreta-se por meio do uso das palavras; mas que realidade podemos nós descrever e interpretar se as palavras que nos serviriam são agora banidas do espaço público?)

Como diria Orwell: importa que as massas estejam alerta. E como diria Jesus: sejam simples como as pombas, mas prudentes como as serpentes.

As massas insistem na cegueira, mas, há, ainda assim, a responsabilidade individual de cada um de nós: nada nos obriga a seguir as massas; a multidão não nos deve servir de refúgio, nem tão pouco nos serve de atenuante. A História já nos avisou que as massas são traiçoeiras. Como escreveu Kierkegaard: a multidão é falsidade (“the crowd is untruth”).

Ora, por fim, devemos aceitar que a mesma análise crítica se aplique a tudo o que diz respeito à religião. De facto, o ambiente religioso é também muito propício ao surgimento de ‘realidades paralelas’ e o evangelicalismo não lhes está imune. Veja-se, por exemplo, a fama que conseguem granjear personalidades como Ken Ham (nos EUA) e Adauto Lourenço (no Brasil e também por cá) apenas porque dizem defender cientificamente o suposto ‘criacionismo bíblico’. Ou, noutro exemplo, veja-se a adesão que ciclicamente se regista em torno de profecias sobre isto ou sobre aquilo. Não será que estes são exemplos que ilustram a crendice acrítica a que somos susceptíveis? E ainda que, dentro do meio evangélico, estes sejam exemplos extremos, não se dará o caso de existirem outros mais generalizados – e também mais difíceis de identificar e, por isso, mais perniciosos?

O alerta de Orwell e a presente sequência de acontecimentos no Sporting servem-me de mote para pensar na forma como vivo a minha vida. A pergunta vem, naturalmente, à minha mente: será que também tenho alguma grande dose de cegueira na minha vida? Será que também há situações em que dou o meu amém porque os meus ouvidos seletivos só captam aquilo que a minha mente quer ouvir para evitar dissonâncias cognitivas? Quais são os meus Estalines e Brunos de Carvalho? Ainda estou à procura das respostas, mas creio que é importante mantermos sempre presente o eco destas perguntas pois elas podem reduzir a susceptibilidade de darmos o triunfo aos porcos.

Posto isto, o leitor não cristão pode perguntar  se o cristianismo não é ele próprio uma realidade paralela. Reconheço nessa pergunta uma grande dose de pertinência. O objetivo deste texto não passa por lhe dar resposta, mas esboço, ainda assim, um enquadramento para que se procure essa resposta. O cristianismo assenta na vida, morte e ressurreição de Jesus. Se ele efetivamente viveu entre nós, morreu e ressuscitou conforme narra o Novo Testamento, então o cristianismo não pode ser acusado de não ser real. Por esse motivo, os cristãos procuraram desde o início demonstrar que a fé na ressurreição de Jesus era sustentada por evidências físicas e testemunhos na primeira pessoa. Como dizia o apóstolo Paulo, se Cristo não ressuscitou então a nossa fé é vã. Mas, se ele ressuscitou, então o cristianismo assenta num acontecimento tão inverosímil que só pode ser entendido como a mais nítida revelação da realidade nua e crua. Acredito que, de certa forma, foi esta a missão de Jesus: revelar-nos a realidade como ela é! O objetivo de Jesus não passou por estabelecer uma realidade paralela, mas sim abrir-nos os olhos para a beleza e as lacunas da condição humana e mostrar-nos como as tratar.

Em suma, a fé cristã pode e deve ser abordada sob este prisma crítico que procura a verdade por meio da destrinça entre a realidade objetiva e as realidades paralelas. Neste sentido, a morte e a ressurreição de Jesus merecem análise cuidada. Para um tratamento detalhado, crítico e académico deste assunto, sugere-se a leitura de qualquer obra de N. T. Wright sobre Jesus. Mas o trabalho de N. T. Wright, ou de qualquer outro autor nesta matéria, não reduz o assunto a um teorema matemático. Qualquer autor – seja ele cristão ou ateu – pode apenas dar argumentos não exaustivos para defender a respetiva tese e a aceitação dessa tese envolverá sempre um certo grau de fé. De facto, não há cristianismo sem fé. Mas atrevemo-nos a dizer: também não há vida sem fé! A fé não é um atributo exclusivo de indivíduos fracos e religiosos, é sim inerente à vida de todos os homens. Todos temos de acreditar em coisas que não vemos e que não são matematicamente demonstráveis.

Assim, este texto não deve ser tomado como um manifesto contra a fé. Mas convém que a fé seja sempre crítica, com capacidade de se avaliar a si mesma. Uma fé que pensa e que, se necessário for, se descontrói e dá lugar a outra. Uma fé que não se confunde com fezadas ou com as crendices cegas das massas e que resiste às teorias da conspiração mesmo quando estas poderiam jogar a seu favor. Uma fé responsável. É esse o repto.

Por uma cosmovisão evangélica não dualista

“Porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos.” (Atos 17:28)

O ‘Deus Desconhecido’, aquele que Paulo anunciou no areópago perante uma audiência composta por atenienses supersticiosos, é um Deus que opera fora da lógica dualista e maniqueísta para a qual muito tendemos. É um Deus que coloca em causa todas as superstições e todas as conceções demasiado superficiais daquilo que reputamos de religioso ou sagrado.

De facto, ao concordar com os poetas e filósofos gregos, afirmando que é neste Deus outrora desconhecido que nós vivemos, nos movemos e existimos, Paulo abdica da velha cosmovisão que opõe as coisas de Deus às “coisas do mundo”. Esta era uma cosmovisão construída a partir do confronto entre o mundo espiritual – aquele que nos parece superior, mais elevado, mais santo – e o mundo terreno – feito de coisas mundanas, banais e temporais. Isto não quer dizer que passamos a encarar todas as coisas sob um prisma de neutralidade como se o bem e o mal não existissem e não divergissem na sua essência. O que isto significa é que, agora, é precisamente no contexto das coisas terrenas e no meio da realidade dita mundana que podemos procurar o sublime, o sagrado.

O Deus anunciado por Paulo traz-nos a perfeita interseção da realidade espiritual com a realidade terrena – duas realidades irremediavelmente unidas por intermédio de Jesus Cristo. Assim, podemos afirmar que o propósito deste Deus é que todas as coisas terrenas sejam consagradas a Ele e que consigamos perceber, apreender e exaltar o valor espiritual de cada uma das muitas coisas que compõem as nossas vidas. Por isso, deixa de fazer sentido falar em coisas de Deus e “coisas do mundo”: o Deus de Paulo será Senhor de tudo, porque dele e por ele,e para ele são todas as coisas (como escreve o próprio Paulo em Romanos 11:36). Também me socorro aqui, uma vez mais, da frase lapidar de Ed René Kivitz: Deus não é o oposto das coisas, mas sim o pleno sentido de todas elas.

Tendo isto em mente, importa tratar alguns dualismos que persistem teimosamente na linguagem e, parece-me, na própria cosmovisão evangélica. Tratam-se de dualismos perigosos porque, cristalizados de forma acrítica nas nossas comunidades religiosas, impedem-nos de reconhecer que Deus excede todas as fronteiras da nossa religiosidade. Podem até tornar-se causas de atrito na práxis cristã. São como uma miopia que nos impede de entender a vida cristã de uma forma menos fragmentada e mais consonante com o Deus de quem são todas as coisas.

A casa do Senhor

“O Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens.” (Atos 17:24)

Na linguagem evangélica, o espaço físico – edifício ou salão – onde os crentes se reúnem é muitas vezes designado de ‘casa do Senhor’. Esta designação, ainda que seja aparentemente inócua e muitas vezes usada sem prejuízo visível, não está em conformidade com a revelação neotestamentária.

É verdade que na lógica do Antigo Testamento – e também na lógica dos gregos – o templo era local de suma importância, pois acreditava-se que Deus – ou os deuses – habitava ali. O templo detinha uma certa exclusividade no que respeitava à presença e à glória de Deus. Mas agora sabemos que Deus não habita em templos feitos por mãos de homens. O rompimento do véu do templo, rasgado de alto a baixo aquando da crucificação de Cristo, ilustra a grandiosidade e a generosidade de um Deus que não pode ser contido no interior de templos, nem aprisionado dentro de sistemas teológicos ou rituais litúrgicos. A ‘casa do Senhor’ não é o lugar onde uma congregação local se reúne, mas os corações, os lares e as comunidades que lhe abrem a porta para que ele ali habite  – e, em última instância, a casa do Senhor é o céu e a terra.

Assim, o local das reuniões religiosas não detém direitos de exclusividade no que respeita à presença de Deus. O encontro com Deus surge, potencialmente, em qualquer lugar. Neste sentido, o espaço de encontro dominical deve ser encarado não tanto como um espaço privilegiado para o encontro com Deus, mas sobretudo como um espaço onde vamos aprender a reencontrar Deus em todos os espaços. O tempo dominical é, por excelência, a oportunidade para nos encorajarmos uns aos outros no propósito de encontrar Deus na vida quotidiana, fora do local de reunião, nas outras casas em que ele habita ou quer habitar, nos outros templos mundanos onde ele deseja tornar palpável a sua presença, pois ele não está longe de cada um de nós (cf. Atos 17:27).

O servo do Senhor

“Nem tampouco é servido por mãos de homens, como que necessitando de alguma coisa; pois ele mesmo é quem dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas.” (Atos 17:25)

Ouvi recentemente um estudante universitário evangélico a exprimir o seu dilema pessoal nestas palavras: “Não sei se hei de continuar a estudar nesta área [do design] ou se hei de ir para o instituto bíblico porque o que quero é servir o Senhor!” Este desabafo, sincero e bem-intencionado, ilustra em si mesmo um dualismo muito pernicioso: se levado à letra, significa que servir o Senhor faz-se somente por meio daquilo que tem relação direta com a esfera eclesiástica ou religiosa. Ora, se assim é, quem é que estamos a servir quando assumimos carreiras ou vocações ditas seculares? Não pode um designer servir o Senhor?

De acordo com Paulo, o Senhor não é servido por mãos de homens: não há nada de que Deus tenha falta e não há necessidades divinas que possamos suprir. Tal como em relação ao templo, também aqui é feita a desconstrução da antiga cosmovisão dualista. Nos tempos do Antigo Testamento, o serviço ao Senhor centrava-se no templo e a figura do sacerdote adquiria uma importância primordial pois ele era, em certo sentido, o responsável por trazer à terra um bocadinho da esfera celestial. Era dessa forma que o sacerdote servia o povo e o Senhor.

O Novo Testamento traz consigo uma nova compreensão do sacerdócio: cada crente é um sacerdote pois a união das esferas celestial e terrena pode agora consumar-se no coração de cada crente; para além disso, cada crente é, também, um agente promotor da união dessas esferas em todas as coisas que compõem a sua vida pessoal e a vida da comunidade em que está inserido. O sacerdócio universal de todos os crentes – e o potencial revolucionário que lhe é inerente – está bem escarrapachado no Novo Testamento. Contudo, ao longo de demasiados séculos, esta nova compreensão foi esmagada pelo peso das instituições eclesiásticas interessadas em manter e em exercer um poder religioso interessado em subjugar os fiéis. Ainda que a Reforma Protestante tenha reavivado esta doutrina, e sejamos hoje especialistas em teorizar acerca dela, não somos céleres a praticá-la. Persiste, assim, a cosmovisão dualista que faz com que sejamos lestos a aceitar que o pastor, o missionário e o evangelista são servos do Senhor, mas lentos a afirmar o mesmo em relação ao operário fabril, ao advogado ou ao empresário.

Neste ponto, talvez seja necessária a reflexão sobre uma questão prévia e basilar: o que significa, afinal, servir o Senhor? Se Deus não é servido por mãos de homens, em que é que se traduz o serviço a Deus à luz do Novo Testamento? Diria que o Novo Testamento nos ensina que servir a Deus é servir o próximo. Essa parece ser, aliás, a sugestão radical de Jesus ao afirmar que o servimos quando alimentamos ou vestimos o necessitado, quando acolhemos o estrangeiro, quando cuidamos do doente e quando visitamos o preso (cf. Mateus 25:24-46).

Servir o Senhor será, portanto, servir e cuidar do próximo. Neste sentido, as nossas congregações eclesiásticas continuam a carecer de pastores e de professores, de conselheiros e de educadores, crentes com vocação para servir os irmãos em funções aparentemente mais religiosas. Mas as nossas congregações são também compostas por gente com todo o género de vocações seculares; vocações que, colocadas ao serviço do próximo e ao serviço da sociedade, são também elas sinónimo de serviço ao Senhor. Estas vocações – dos profissionais de saúde, dos professores seculares, dos técnicos administrativos, dos marceneiros, empreendedores ou designers – não são menos santas ou menos necessárias. São, também elas, sagradas. Se o cristão não está a servir o Senhor no exercício da sua profissão, então quem é que ele está a servir? Já assim cantava o Bob Dylan: teremos sempre de servir alguém e é melhor que seja o Senhor…

O dia do Senhor 

Afastamo-nos, entretanto, do conteúdo do discurso de Paulo no areópago, mas, por ele iluminados, continuamos a dissecar os dualismos presentes na cosmovisão evangélica. Perguntamo-nos agora: será que, à semelhança daquilo que acontecia no Antigo Testamento, ainda faz sentido considerar que existe um dia da semana que é, por inerência, e em contraste com os restantes, o dia do Senhor?

No contexto do judaísmo, o sábado era o dia santo, separado para descanso e dedicação ao Senhor. Os 10 Mandamentos, fundamentais como alicerces da cosmovisão do povo judaico, incluem o preceito de guardar o sábado. Mas Jesus, durante o seu ministério terreno, desconstrói o entendimento distorcido que os seus contemporâneos – com particular destaque para os fariseus – tinham a respeito do sábado. Eles viviam o sábado de modo legalista, usando-o como forma de afirmar superioridade em relação aos demais e como forma de exibir méritos próprios. Neste quadro, Jesus vem afirmar-se como Senhor do próprio sábado, explicando que “o sábado foi estabelecido por causa do homem e não o homem por causa do sábado” (Marcos 2:27-28). Assim, a observância do sábado teria como propósito o bem-estar do homem e não serviria nem para aplacar a ira de um Deus que nos quer sossegados um dia por semana, nem para ganhar pontos num qualquer ranking de santidade por ele estabelecido.

Hoje vivemos numa era de absurdo frenesim. No meio do ritmo louco e insustentável que imprimimos nas nossas vidas e nas nossas sociedades, o valor do sábado – o seu propósito original – não deve ser menosprezado. Carecemos de aprender a gerir os ritmos, as prioridades, a própria vida. Carecemos de tempos e espaços que, pela ausência dos estímulos associados a todos os trabalhos em que nos metemos, nos façam um bocadinho mais saudáveis e nos ajudem a respirar melhor. E, se queremos aprender a encontrar Deus no nosso quotidiano, precisamos de momentos de verdadeiro descanso, de coração quieto e mente sossegada.

Sim, valorizemos o conceito do sábado como remédio para doenças várias dos nossos dias. Mas, ao mesmo tempo, devemos perguntar-nos: fará sentido tratar o sábado – ou o domingo que o substitui na tradição cristã – como o dia do Senhor em detrimento dos restantes dias? Se há um dia da semana que é pertença do Senhor, a quem pertencem os outros seis dias? Se há um dia que na nossa prática religiosa assume maior importância e santidade, não corremos o sério risco de menosprezar – e desaproveitar – o potencial dos outros dias?

Que os dias ou os tempos que separamos para descansar e para encontrar Deus de uma forma mais intencional sirvam para percebermos que todos os dias – todos os tempos – são do Senhor. Que o tempo dominical seja colírio para vermos que Deus é, na realidade, o Senhor dos sete dias da semana, o dono de todas as horas da vida. Que aceitemos a proposta fascinante que espreita nas entrelinhas do Novo Testamento: que cada hora da vida contém em si o potencial de ser tão sagrada e tão sublime quanto os momentos de descanso e liturgia do sábado ou do domingo.

A adoração ao Senhor 

No meio evangélico, é muito comum confundirmos adoração a Deus com aquilo que fazemos no encontro religioso dominical. Criamos, assim, mais um dualismo: o culto presta-se no local das nossas reuniões religiosas – na chamada ‘casa do Senhor’ – por meio das mais diversas liturgias. Estas, compostas por músicas, leituras, orações e pregação, podem apresentar maior ou menor grau de flexibilidade no movimento evangélico. Mas cremos que a análise que fazemos é válida quer para as congregações que apostam numa abordagem mais contemporânea quer para aquelas que mantêm uma liturgia pontuada por maior rigidez e austeridade: ao cultuarmos na ‘casa do Senhor’ consideramos que, assim, exercemos a nossa devoção, adorando-o e louvando-o com salmos e hinos.

O dualismo que daqui resulta pode não ser intencional. Mas se adorar o Senhor é aquilo que fazemos no domingo no local de culto, o que é que passamos a fazer assim que a reunião dominical termina e saímos pela porta desse local? Será que, por oposição à forma como concebemos o culto dominical, não temos cedido ao risco de destituirmos de valor espiritual a vida que vivemos fora do tempo e do espaço de culto? Será que não temos diminuído o significado de adoração, reduzindo-a àquilo que acontece no culto, e perdendo assim a riqueza resultante de uma vida vivida na sua totalidade como um ato de adoração?

Talvez precisemos de voltar a escutar – com ouvidos de ouvir – as palavras proferidas por Jesus no seu famoso encontro com a mulher samaritana: já chegou a hora em que não é nem no monte de Samaria, nem em Jerusalém, nem nos salões de culto evangélicos que adoramos o Pai; agora, aquele que adora o Pai fá-lo no Espírito e em verdade – são estes os adoradores que o Pai procura (ver João 4:19-24). Esta é a nova hora: por todos os lugares serem, potencialmente, ‘a casa de Deus’, então todos os locais são aprovados como locais de adoração.

Mas o que significa adorar no Espírito e em verdade? Dando continuidade à tentativa de desfragmentação da cosmovisão evangélica, afirmamos que é na vida quotidiana que a verdadeira adoração se exprime e talvez adorar no Espírito consista em exercer e promover amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, modéstia e autodomínio – exercer e promover os frutos do Espírito (cf. Gálatas 5:22).

Nas entrelinhas da nova realidade proposta por Jesus encontramos ecos da mensagem do profeta Amós. Este profeta viveu num período em que Israel era dominado pela corrupção praticada por gente que odiava aqueles que lutavam por justiça nos tribunais e detestava os que procuravam dizer a verdade (Amós 5:10). Neste contexto, era dura de ouvir a mensagem de Deus que chegava por meio do profeta:

«Odeio e desprezo as vossas festas. Não me agradam as vossas cerimónias litúrgicas. Ainda que me ofereçam animais em sacrifício ou me tragam outras ofertas, não as aceito. Nem sequer olho para os animais gordos dos vossos sacrifícios. Afastem de mim o barulho dos vossos cânticos; não posso ouvir a música das vossas harpas. Quero, sim, que a justiça corra como as águas, e aquilo que é reto, como um rio que nunca seca.» (Amós 5:21-24)

De que serve cultuar a Deus no ambiente religioso se as nossas vidas fora desse ambiente não refletirem o seu caráter? De que vale honrar o Senhor com os nossos lábios, mas ter o coração longe dele? Se a nossa vida quotidiana não for um ato de contínua adoração a Deus, de que vale cantar-lhe louvores ao domingo?

Chegados aqui, podem os leitores achar que, levando esta perspetiva ao extremo, o culto dominical perde toda a relevância. Convém então explicar que eu faço parte de uma comunidade evangélica com a qual partilho a caminhada de fé e com a qual procuro estar intencionalmente comprometido. No âmbito desta comunidade, temos espaço e horário para o culto dominical e este assume uma grande importância na nossa vivência comunitária. Temos também um pastor que, por vocação e chamada, assume um papel preponderante na orientação da comunidade e no aconselhamento daqueles que a compõem. Adicionalmente, posso dizer que, em múltiplos períodos da minha vida, tenho estado diretamente envolvido no louvor musical. Não posso, portanto, negar o valor do culto, do clero, da ‘casa’ e do domingo. Acredito no sentido e na benignidade destas coisas. Contudo, não acredito nos dualismos gerados em torno destas coisas e na cosmovisão fragmentada que daí resulta.

Assim, a adoração dominical faz sentido enquanto meio de reafirmação da nossa entrega a Deus e dos princípios fundamentais nos quais se alicerça a cosmovisão cristã – o amor, a graça e a extravagante misericórdia deste Deus. Através dos salmos lidos ou entoados – sejam eles mais ou menos modernos – podemos realinhar as nossas convicções e as nossas emoções com estes princípios fundamentais e preparar os nossos corações para mais uma semana de contínua adoração prática. Para além disso, a adoração dominical tem também uma inestimável componente comunitária: até a despeito de eventuais divergências existentes na congregação, o cântico em conjunto leva-nos a exercitar a união e a harmonia pela afirmação uníssona da fé que nos é comum e nos torna irmãos.

Posto isto, este texto não pretende retirar o valor ao culto, ao clero, à ‘casa’ e ao domingo. Mas pretende desconstruir os dualismos que tanto alimentamos quando consideramos que a fé cristã se deve centrar nestas coisas, por elas serem “as coisas do Senhor”. Porque do Senhor, meus amigos, do Senhor é a vida e tudo o que ela contém!

Igreja Universal do Reino de Quem?

Vejo a recente reportagem da TVI sobre o esquema ilegal de adoção de crianças estabelecido por líderes da IURD e utilizando um lar desta organização e não posso evitar pensamentos em catadupa.

Primeiro, ouço o testemunho de gente que esteve dentro da IURD e sou levado a recordar a minha própria infância numa igreja evangélica e a interrogar-me sobre quais os aspetos que resultavam mais de um espírito de seita do que do cristianismo puro e simples que hoje quero viver. Não deixo de sentir gratidão porque nunca a minha igreja de menino enveredou pelas práticas neopentecostais e nunca a escabrosa teologia da prosperidade encontrou espaço para penetrar ali a seu bel-prazer. Ainda assim, assusto-me ao detetar semelhanças entre a linguagem e o discurso de Lucas Paulo e a linguagem e o discurso que eu presenciei, ouvi e, em certa medida, também usei. O ambiente evangélico português, recluso, hermético e de reduzida dimensão, também favorecia então a adoção de posturas, comportamentos e até linguagem próprias. Também favorecia um certo nível de alienação. Não tenho dúvidas das boas motivações da maior parte das pessoas que promoviam esse ambiente, incluindo aquelas que ocupavam posições de liderança. Contudo, sabendo hoje que esse ambiente é desnecessário e até contraproducente a uma vivência saudável e plena da fé cristã, incomoda-me a interrogação: que cargas e equívocos transporto ainda hoje que sejam resultado desse ambiente hermético? Será que, sem eu o saber, a minha mente ainda carece de desintoxicação? Os meus olhos ainda requerem mais gotas de colírio?

Outro pensamento que me assalta a mente diz respeito ao falhanço rotundo das autoridades portuguesas com responsabilidade nos processos de adoção. Tudo indica que os processos referidos na reportagem tenham sido pautados por erros de juízo gravíssimos e recorrentes da Segurança Social e dos próprios tribunais. Isto mina a credibilidade das instâncias públicas e abala a nossa confiança nos mecanismos que aparentam proteger o cidadão comum. As mães e as famílias que ficaram sem as suas crianças somos eu e tu. De modo a que o Estado recupere alguma credibilidade, é fundamental que os responsáveis sejam apurados e chamados à justiça, dentro daquilo que os prazos de prescrição ainda tornarem viável. É fundamental que o próprio Estado não adote este silêncio.

Finalmente, o outro pensamento que se apodera de mim – este bem mais forte e incómodo do que os dois anteriores – diz respeito à própria IURD e ao destino da sua liderança. Cabe aqui um parêntesis para explicar que, na maior parte do tempo, eu sou praticamente um universalista funcional (nota: este ‘universalismo’ é jargão teológico que nada tem que ver com a IURD). A minha abordagem existencialista à possibilidade de que exista um inferno é muito bem resumida pelo que li uma vez ao Ed René Kivitz n’O Livro Mais Mal Humorado da Bíblia: “A minha indignação contra o mal sistémico que afeta todos os segmentos da sociedade multiplicando vítimas faz-me desejar a existência do inferno. A minha convicção de que esse mal habita também em mim, que faço o que não quero e sou incapaz de fazer o bem que desejo, faz-me considerar a possibilidade de um inferno vazio.”

Este caso configura, precisamente, um dos tais males sistémicos que me faz desejar a existência do inferno. É um daqueles casos que me faz compreender os salmos imprecatórios – aqueles em que o salmista faz uso de uma linguagem violenta para desejar uma sorte cruel a todos os seus inimigos, sem contemplação, sem misericórdia. Sinto-me até tentado a fazer destes salmos a minha oração. É que reparem no seguinte:

Até podemos concordar que a IURD é uma igreja, embora num sentido lato do termo grego original e não no sentido neotestamentário. Também podemos concluir que a IURD é universal ou que pelo menos tenta sê-lo, na medida em que está presente em mais de 180 países. Podemos ainda afirmar que a IURD é um reino: é, efetivamente, uma espécie de império religioso assente numa estrutura totalmente hierarquizada e capaz de gerar e movimentar milhões de crentes e milhões de dólares. Mas… de quem é este reino?

O novo testamento diz-nos que o Reino de Deus é justiça, paz e alegria no Espírito Santo (Romanos 14:17). Justiça, paz e alegria: bênçãos que a ação dos líderes da IURD roubou às mães e famílias afetadas por este esquema. O que nos leva a concluir algo que já tinha sido patente em escândalos anteriores, mas que fica agora particularmente evidente: a IURD até pode ser um reino ou império (palavra que lhe assenta bem melhor) mas não é Deus que nela reina certamente. Porque mesmo que haja muita gente justa, sincera e enganada nas fileiras deste império (e estou certo de que esse é o caso), aquilo que vem à tona demonstra que a liderança da IURD, personificada pelo tal Edir Macedo, se assemelha muito mais a um qualquer diabo. Ora, caso o inferno exista mesmo, não será ele, primordialmente, o destino de todos os diabos que desde o Éden enganam, aprisionam e destroem a humanidade?