O Cristão e a Retórica

Um dos desafios que a era pós-moderna coloca ao Cristianismo brota da obsessiva desconstrução de todo e qualquer tipo de discurso. A filosofia pós-moderna, a galope de ideias correta ou incorretamente atribuídas ao filósofo francês Jacques Derrida, postulou há décadas que a linguagem não admite qualquer referente objectivo. Por outras palavras, o discurso humano não é capaz de descrever o real, pelo que tudo aquilo que tomamos por realidade não passa de mera construção social. O discurso humano é, portanto, mero produto do caldo social no qual o indivíduo está mergulhado. Mais do que apontar para uma realidade que seja objectiva e independente do indivíduo, o discurso humano pode, quando muito, constituir objecto de análise para extrair considerações sociológicas sobre o indivíduo que o profere. O discurso é então desconstruído, virado do avesso, para revelar os factores sociais e culturais que lhe estão subjacentes.

A esta filosofia dita pós-estruturalista acresce ainda a peregrina tese de Michel Foucault de que toda a linguagem é inerentemente opressora. Para Foucault, a verdade é socialmente determinada, construída tão somente a partir do discurso feito pelos grupos dominantes. Neste sentido, a linguagem é mera arma num interminável jogo de poder. Quem controla a linguagem – quem determina o discurso oficial – constrói a realidade e usufrui do poder. Aos grupos anteriormente dominados, mantidos nas franjas da sociedade por meio de discursos oficiais que perpetuavam o status quo, cabe agora desconstruir a linguagem dos anteriores discursos, revelando a violência que lhe estava inerente, e construir discursos alternativos (usando, se necessário, uma novilíngua) que promovam a libertação e o fim da subjugação. (Note-se, porém, que esta hermenêutica levada à sua conclusão lógica implicará que os novos discursos são também inerentemente opressores).

Esta filosofia não ficou remetida às universidades francesas, mas penetrou nas várias camadas do mundo ocidental, incluindo nos corredores das câmaras legislativas. Para além disso, as principais ideias foram popularizadas e manifestam-se hoje de forma explosiva nas redes sociais por meio, por exemplo, da famigerada cultura de cancelamento. Importa contudo afirmar que a análise de Foucault é obviamente aplicável a certos contextos. Afinal, a propaganda (isto é, o discurso oficial) foi uma ferramenta eficazmente usada pelos regimes totalitários do século XX, alguns deles apostados em construir completas distopias como George Orwell tão sublimemente expôs. A linguagem (incluindo muitas vezes a linguagem teológica) tem sido também amplamente usada para perpetuar outros sistemas de opressão institucionalizada – a escravatura será, talvez, o mais óbvio – bem como estereótipos que, cristalizados na nossa imaginação colectiva, são efetivamente nefastos para determinados grupos. A título de exemplo, podemos lembrar que diversas pesquisas têm apontado disparidades na forma como os media tendem a enaltecer a “capacidade atlética” do desportista negro ao mesmo tempo em que destacam a “inteligência” do desportista branco. Também é possível dar parcialmente razão a Michel Foucault no que toca à forma como a linguagem pode ser usada para promover estereótipos de género – e aqui também a Igreja poderá fazer mea culpa… Como tem sido apanágio deste espaço, reconheço que a desconstrução, incluindo a desconstrução da linguagem, é benigna e necessária em diversos contextos. A pós-modernidade não é o demónio e a Igreja pode dialogar com ela e assimilar, com sensibilidade e discernimento crítico, as correções benignas que ela provoca.

Por outro lado, a mania de procurar elementos opressores em todo e qualquer discurso e a obsessão desconstrutiva que daí advém originam hoje um chorrilho de aberrações sem nexo, ilustradas, por exemplo, por aquele congressista americano que concluiu a sua oração com “Amen and Awomen” ou pela sugestão de que a palavra inglesa “history” seja substituída por “herstory”. Para além destas situações quase anedóticas (mas não desprovidas de poder simbólico), esta filosofia da linguagem coloca outros desafios mais prementes ao Cristianismo, uma vez que o Cristianismo não se faz sem discurso. Ainda para mais, trata-se de um tipo de discurso que tece considerações de carácter absoluto sobre a realidade e que ancora essas considerações numa Pessoa particular. A objectividade e a exclusividade em que assenta a fé cristã – Jesus Cristo como caminho, verdade e vida – são ambas anátemas à luz da filosofia hoje vigente.

Estamos, portanto, numa espécie de encruzilhada: como elaborar discurso cristão se todo o tipo de discurso é hoje tido como inerentemente agressivo? Nestas circunstâncias, podemos detectar entre os cristãos (e, particularmente, no evangelicalismo) uma reação de total rejeição dos princípios pós-modernos e uma reiterada insistência na possibilidade de usar a linguagem como ferramenta para descrever de forma objectiva (toda) a realidade. Esta reação tende a rejeitar a dialética e a ignorar as imensas áreas cinzentas da nossa existência e da nossa missão cristã. Na sua versão mais extremada (e não me remetendo agora à esfera cristã) a completa rejeição destas ideias pós-modernas traduz-se também no uso abusivo da retórica. A crença de que toda a desconstrução da linguagem é absurda e de que merece apenas desprezo dá azo a uma retórica agressiva, sem escrúpulos. Ao chamado politicamente correto que procura policiar toda a nossa linguagem responde-se com um politicamente incorrecto desregrado, aumentando o volume de uma retórica propositadamente inflamada. A partir dos dois extremos deste fenómeno de ação-reação erguem-se trincheiras num mundo ocidental cada vez mais polarizado, como é evidente na esfera política e no sub-mundo das redes sociais.

Acredito que neste contexto, como em tantos outros, o caminho cristão terá de ser trilhado como uma terceira via. A ética sugerida por Jesus não está refém de lógicas redutoras e dualistas. Jesus é aquele que se recusa a optar entre a resistência violenta e a anuência passiva; ao invés, Jesus inaugura a via da resistência não-violenta, dá a outra face, caminha a milha extra. A ética cristã convida à prática de uma imaginação espiritual (ou seja, mediada pelo Espírito Santo) que transcende a lógica da inevitabilidade. Somos confrontados neste momento histórico por duas forças polarizadoras e pode parecer-nos que não há forma de escapar à atração exercida por uma destas forças; podemos sentir que é inevitável ceder a uma delas. Mas a Igreja não se move nem pela força de um extremo, nem pela violência do outro, mas pelo Espírito de Deus.

Sim, carecemos de um reavivamento espiritual que venha re-baptizar as nossas línguas e o nosso discurso. Entre o (paradoxal) totalitarismo pós-moderno que visa suprimir todo o discurso objectivo e absoluto e uma reação oposta que faz uso de um discurso propositadamente agressivo e polarizador (e que, ironicamente, acaba por dar razão a Foucault no que respeita à existência de linguagem inerentemente violento) carecemos do dom espiritual de criar pela palavra. “Pela fé entendemos que o mundo foi criado pela palavra de Deus” (Hebreus 11:3). O discurso de Deus (que, em termos teológicos, coincide em última instância com Jesus Cristo, o Logos divino) constrói, gera vida, cria. Por meio da sua palavra, Jesus perdoou, curou, transformou e deu vida. Deus demonstra assim que não podemos ler toda a realidade por meio da teoria de Foucault, porque o discurso divino é inerentemente abençoador, gracioso e reconciliador. Será que este discurso não constitui também um modelo para a missão da Igreja neste momento histórico? Não estamos nós a ser desafiados para a imitação de Cristo por meio da adopção de uma praxis que visa construir, gerar vida, criar pela palavra?

Sim, rejeitamos a postulação pós-moderna de que todo o discurso é agressivo, porque temos experimentado em nós o efeito transformador e benigno do discurso de Deus; mas, por causa dessa mesma experiência, rejeitemos igualmente a retórica reactiva e violenta que tem tentado capturar a imaginação das massas, incluindo entre cristãos. Rejeitamos que o nosso discurso tenha de ser silenciado, mas rejeitamos igualmente que a alternativa passe por um discurso agressivo, destrutivo, alienador. Com Cristo podemos aprender uma terceira via caracterizada pela retórica que cria pontes, que promove a edificação, que dá graça aos que a ouvem (cf. Efésios 4:29). Só esta pode ser a vocação da Igreja numa era de trincheiras: uma praxis de cura e de reconciliação para cuidar daqueles que estão feridos ou perdidos em terra de ninguém. Esta praxis começa necessariamente no discurso porque, como dizia Martin Luther King Jr., “em última análise, meios e fins têm de ser coerentes porque o fim é preexistente nos meios e, em última instância, meios destrutivos não podem produzir fins construtivos.”