Pontos e contos de um cristão pós-moderno

Month: Novembro, 2016

O dia em que descobri o que queria ser quando fosse grande

Estávamos naquele bar mesmo junto à faculdade, tantas vezes visitado para uma bica rápida e tantas outras vezes frequentado para um jogo de cartas não tão rápido. Naquele dia não era nem a bica, nem o jogo, que marcavam o compasso da minha passagem pelo bar. Era a conversa com um bom amigo. Às tantas, confessei:

– Sabes, o que percebo é que o GBU nos desafia a viver a fé com prioridades, ritmos e uma integralidade que acaba por contrastar muito com aquilo que alguns de nós aprendemos nas igrejas onde crescemos. Ainda por cima, essa vivência da fé, no GBU, concretiza-se de uma forma comunitária e torna-se muito marcante. Por isso, não sei como ficarei quando terminar a universidade e for tempo de deixar o GBU. Receio que venha a sentir um grande vazio…

O meu amigo, depois de me dar todo o tempo necessário para que eu expressasse o meu receio e a minha frustração, pegou numa caneta e num guardanapo de papel, desenhou uma circunferência, e apontou para o centro:

– Aqui é onde se situam muitas igrejas: no centro do círculo, protegidas do ‘mundo’, mas pouco dialogantes com a sociedade – disse-me de forma concisa.

Em seguida, a ponta da caneta percorreu novamente a circunferência e ele acrescentou:

– Aqui, na fronteira, é onde o GBU procura colocar-se de forma intencional, porque acreditamos que é necessário promover o diálogo com as áreas de estudo secular e, também, com a sociedade no seu todo para que a fé dos estudantes universitários floresça e se consolide.

O meu amigo continuou a aplicar aquela ilustração, falando da dificuldade que alguns graduados do GBU sentem quando terminam os estudos e são pressionados (mais que não seja pelo ambiente religioso de que fazem parte) à trajetória de ‘regresso’ até ao centro da circunferência. O preço dessa trajetória pode ser a diluição de todas as aprendizagens no caldo da antiga vivência religiosa, marcada por outras prioridades, por outros ritmos e por uma perspetiva fragmentada pela má compreensão do binómio profano/sagrado.

Aquele guardanapo de papel vem muitas vezes ao meu pensamento, ao ponto de arriscar dizer, em retrospetiva, que foi nesse dia que descobri o que queria ser quando fosse grande: queria, nada mais nada menos, do que ser um fronteiriço. Afinal, tinha sido ali, junto à fronteira, que eu havia encontrado um tesouro de imenso valor. Portanto, aplicando a chamada parábola do tesouro escondido, só me restava uma hipótese: abrir mão de tudo o resto e fixar-me onde estava o tesouro. Nada de trajetórias de regresso ao centro, nada de diluições, nada de comprometer a fé bela e plena de significado que me tinha sido dada a conhecer junto à fronteira.

Ora, para uma pessoa que cresceu muito longe das fronteiras, havia e há muito caminho a desbravar. Continuam a ser necessárias doses elevadas de desconstrução e desformatação porque muitos elementos da minha cosmovisão ainda são determinados por pontos de vista enviesados e incompletos, próprios de quem vê a realidade, difusa e distante, a partir do centro da circunferência. Como este processo de desconstrução – esta aventura fronteiriça – não pode ser solitário, procuro rodear-me de amigos que sejam mais experientes nesta coisa de desbravar caminho rumo à fronteira, amigos que conhecem melhor os mapas que lá nos levam. Ao mesmo tempo, desejo que me seja também concedida a graça de conseguir falar para dentro: convidar à aventura aqueles que ainda se movem em territórios demasiado interiores. Estou convicto de que o desafio de lançar fora o medo, abrir mão da segurança e do conforto e ser um cristão fronteiriço, em diálogo permanente com o mundo, é O Grande Desafio extensivo a todos os cristãos. Porque, como já dizia aquele a quem seguimos, “ninguém, depois de acender uma candeia, a cobre com um vaso ou a põe debaixo duma cama; pelo contrário, coloca-a sobre um velador, a fim de que os que entram, vejam a luz”.

Laodiceia

Leio a carta que escreveste para mim e confesso:
É de Laodiceia que eu parto,
Mas não quero ficar aqui.
Este ponto de partida não é o meu destino.
Caminharei.

Confesso a minha cegueira quase crónica,
Mas quero passar a ver.
Vendes-me desse remédio?
Porque eu quero ver para lá das estatísticas,
Para além de números mortos,
De informações ocas e preconceitos apressados,
De factos vazios e emoções descontroladas.
Quero o tal colírio eficaz que me mostra a realidade como ela é.
A cirurgia ocular que me dá a conhecer quem tu és e quem sou eu.

Confesso que não sou frio nem quente,
Mas quero provar da verdade que queima por dentro,
A verdade ontológica,
Servida em pão e vinho,
Servida em corpo e sangue,
Servida em mistério cruciforme.
A verdade que sabe a fogo que não se apaga,
Que tudo refina,
E que desfaz o louco que há em mim.

Confesso que é de Laodiceia que eu parto,
Mas, tenha eu ouvidos para ouvir,
Tenha eu coragem para me mover,
Caminharei.
Pois não quero ficar aqui.