Repensando Atitudes – Um Ensaio sobre Cristianismo e Crise Ambiental – Parte 1
by davidraimundo
Repensando Atitudes — Um Ensaio sobre Cristianismo e Crise Ambiental1
Parte 1
“Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus…
adoptando a condição de servos.”2
“O estado do nosso planeta não é bom. A terra está a gemer.”3 Este eco de Romanos 8:22 é o veredicto de Steven Bouma-Prediger após analisar vários desafios ambientais com que nos deparamos atualmente. Enfrentamos uma crise ambiental de proporções globais que obriga a uma reflexão urgente e a respostas imediatas. Este veredicto é o nosso ponto de partida e não nos deteremos a justificá-lo: há abundante literatura que o faz, da qual é exemplo a já citada obra de Bouma-Prediger. O propósito do presente ensaio é outro: perguntamo-nos se é possível responder a esta crise a partir de uma cosmovisão cristã. Na primeira parte do ensaio relembro acusações feitas ao Cristianismo a respeito da origem da crise ambiental e analiso em que medida é que essas acusações se ajustam à história da nossa civilização. A segunda parte do ensaio foca-se na interpretação do chamado ‘mandato cultural’ de Génesis 1:28 — um texto controverso no âmbito do debate teo-ecológico. Qual é o significado e quais são as implicações do mandamento de Deus para que exerçamos domínio sobre a criação e subjuguemos a terra? Será que este mandamento pode ser entendido e vivido de forma compatível com a necessidade de responder aos severos problemas ambientais do nosso tempo? O meu objetivo é demonstrar essa compatibilidade, trazendo à conversa contribuições de diversos teólogos contemporâneos de forma a esboçar uma interpretação do mandato cultural que seja sólida, contextualizada e cristocêntrica.4
A acusação de que o Cristianismo “carrega uma enorme carga de culpa” a respeito da crise ambiental pode ser rastreada até ao ensaio escrito por Lynn White e publicado na revista Science em 1967.5 Ganhou fama a acusação de que a presente crise ecológica é consequência do antropocentrismo inerente à história da criação Judaico-Cristã. De acordo com White, as nossas vidas atualmente ainda se baseiam, em grande medida, num axioma Cristão que afirma que “Deus planeou toda a criação explicitamente para benefício e domínio humano.” Como forma de ultrapassar este alegado paradigma, White propôs que “encontrássemos uma nova religião ou que repensássemos a antiga.”
A acusação de Lynn White foi posteriormente desenvolvido por vários autores e hoje ainda escutamos os seus múltiplos ecos na praça pública, vindos, por exemplo, de ativistas ambientais. Paul Watson, co-fundador da Greenpeace, é um exemplo óbvio: Watson tem levado a sério a sugestão de White, advogando publicamente contra o Cristianismo (e contra qualquer outra forma de religião tradicional) e propondo, em alternativa, uma “religião biocêntrica.”6 Por outro lado, também tem sido argumentado que a acusação de White é enganadora, uma vez que “as reconstruções da história das ideias em relação à alegada responsabilidade do Cristianismo pela crise ecológica não podem permanecer simplistas e unidimensionais se quiserem ser convincentes, e se quiserem de facto contribuir de forma construtiva para o debate ecológico.”7 John W. Rogerson afirma que a mudança fundamental da pré-modernidade para a modernidade ocorreu quando Descartes propôs a razão como árbitro para determinar a verdade. De acordo com Rogerson, foi o pensamento cartesiano que originou uma transformação no nosso entendimento da natureza que, tendo tido origem na cultura Cristã daquele tempo, acabou por sofrer uma “mutação” tornando-se uma cosmovisão secular. Robert Brennan também localiza a ideia moderna de domínio sobre a natureza no sonho Iluminista do Progresso e não no Cristianismo.8 Para além disso, Brennan analisa uma amostra de abordagens teológicas ao longo da história e conclui que, “ao invés de ser um eco-vilão, o pensamento Cristão tradicional tem encorajado uma cuidadosa reflexão sobre a natureza e o cuidado da mesma.”
Neste ponto somos forçados a colocar a seguinte questão: será que, com Brennan, podemos afirmar de forma tão taxativa que a teologia Cristã tem sido maioritariamente benigna ao longo da história quando aborda questões ambientais? Uma análise histórica detalhada está fora do âmbito deste ensaio, mas podemos tecer duas considerações adicionais a propósito da conclusão de Brennan. Em primeiro lugar, é justo mencionar que encontramos na tradição Cristã exemplos de atitudes virtuosas para com a criação. O próprio Lynn White aponta para um desses exemplos ao recordar a praxis de Francisco de Assis e ao propor “Francisco como um santo padroeiro para os ecologistas.”9 Encontramos na Grã-Bretanha do século XIX outro exemplo inegável, quando a prática de vivissecção de animais “provocou uma campanha anti-vivissecção que foi liderada por Cristãos e que fez uso de argumentos baseados na fé cristã para se opor à vivissecção.”10 Em segundo lugar, temos de reconhecer que a conclusão de Brennan não permanece intacta se a compararmos com todo o espectro de interpretações históricas do mandato cultural, desde os Pais da Igreja até aos nossos dias. As interpretações mais antigas eram claramente hierárquicas e antropocêntricas, como ilustra Lactantius (AD 260-330): “mais uma vez, o facto de que os outros seres viventes foram feitos por causa do homem resulta obviamente disto: eles são subservientes ao homem e foram dados para a sua proteção e serviço.”11 Num comentário acerca da forma como os primeiros Cristãos interpretavam o termo “domínio,” Morwenna Ludlow afirma que “é difícil perceber como é que os Cristãos dessa era poderiam ter ido além de uma teologia antropocêntrica” uma vez que eles faziam equivaler a imago Dei à faculdade da razão humana; nesse sentido, eles incorporaram no pensamento Cristão uma ênfase na racionalidade que vinha do mundo Greco-Romano.12
Temos de ter em consideração que esses teólogos de outra era não enfrentavam as ameaças ambientais a nível global que nós hoje enfrentamos; por essa razão, a teologia deles nunca foi desenvolvida sob o desafio de dar resposta a essas ameaças — mas a nossa é! Neste sentido, devemos reconhecer que a teologia contemporânea tem trazido interpretações frescas do mandato cultural; iremos abordá-las em breve. Mas também devemos reconhecer que as abordagens antropocêntricas ainda podem ser encontradas na teologia Cristã contemporânea. Por exemplo, num “comentário económico” e pós-milenista ao livro de Génesis, Gary North fala de uma “ordem fundamental nos processos da criação” afirmando que “o sol, a lua, e as estrelas possuem uma regularidade que serve os propósitos do homem e, de uma maneira subordinada, das outras criaturas da terra.”13 Calvin Beisner, argumentando a favor de uma economia de mercado livre, reitera que “o mandamento de domínio significa claramente que a terra, com tudo o que nela há… foi planeada por Deus de forma a servir as necessidades humanas.”14 Para além disso, em 2000, a Cornwall Alliance, lobby de cariz Cristão, emitiu uma declaração que argumenta em prol da economia de mercado, demonstra cepticismo relativamente aos problemas ambientais, e afirma que “a pessoa humana é o recurso mais valioso do planeta terra.”15 Não nos iremos debruçar de forma prolongada acerca destas abordagens, mas podemos tecer duas curtas considerações sobre as mesmas: em primeiro lugar, a abordagem que iremos esboçar em seguida difere destas de forma vincada (e responde-lhes implicitamente); em segundo lugar, estas abordagens negam a confissão e o arrependimento que o Cristianismo tem em dívida “porque apesar de a fé Cristã não ser necessariamente anti-ecológica, temos agido demasiadas vezes como se o fosse.”16
Daqui em diante, vamos focar-nos na interpretação do mandato cultural. Mesmo concluindo que a acusação de Lynn White é historicamente falaciosa, poderíamos ser levados a pensar que não existe uma forma de interpretar o mandamento divino que esteja alinhada com as exigências do presente desafio ambiental. Noutras palavras, poderíamos considerar que esse mandamento torna o Cristianismo inapto no que respeita a responder aos desafios atuais, de tal modo que, no fim de contas, White tinha razão quando pedia uma nova religião. Mostremos, ao invés disso, uma forma de repensar a nossa antiga religião.
Notas:
- Este ensaio faz uso de fontes que consistem em textos originalmente publicados em língua inglesa. As citações foram traduzidas para português pelo autor do ensaio e qualquer imprecisão que resulte dessa tradução é da exclusiva responsabilidade do mesmo.
- Filipenses 2:5,7.
- For the beauty of the earth – a Christian vision for creation care, (Grand Rapids: Baker Academic, 2nd ed., 2010), 54.
- Cabe aqui uma nota para reconhecer que o Cristianismo contempla várias formas de abordar a Bíblia e que as questões aqui colocadas poderão nem fazer sentido para algumas correntes cristãs. Contudo, procura-se aqui uma abordagem que possa ter pontos de contacto com a teologia evangélica que tende a encarar a Bíblia como “única regra de fé e prática.” Para além disso, mesmo as abordagens cristãs que revelam maior grau de flexibilidade no trato da Bíblia têm esta, em princípio, como alicerce principal na formação da cosmovisão e praxis. Assim, a questão da interpretação do mandato cultural será também relevante no âmbito dessas abordagens.
- Lynn White, “The Historical Roots of Our Ecological Crisis”, Science 155, (1967): 1203-7.
- Paul Watson, “Biocentric Religion – A Call For,” in Encyclopedia of Religion and Nature, (ed.) Bron Taylor (New York: Continuum, 2005), 176-9.
- John W. Rogerson, “The Creation Stories: Their Ecological Potential and Problems,” in Ecological Hermeneutics: Biblical, Historical and Theological Perspectives, (ed.) David G. Horrell et al. (New York: T&T Clark International, 2010), 24.
- Robert Brennan, “Dominion over Nature – Is traditional Christianity really the eco-villain?” in Christian Perspectives on Science and Technology, (ISCAST Online Journal, Vol. 14, 2010), 9.
- White, 1207.
- David L. Clough, On Animals, vol. I: Theological Ethics (London: T&T Clark, 2019), 139.
- Citado em: Ronald E. Manahan, “A Re-examination of the Cultural Mandate: An Analysis and Evaluation of the Dominion Materials,” PhD diss., (Grace Theological Seminary, 1982), 19. Esta dissertação inclui um extensivo repositório de interpretações históricas do mandato cultural.
- Morwenna Ludlow, “Power and Dominion: Patristic Interpretations of Genesis 1,” in Ecological Hermeneutics: Biblical, Historical and Theological Perspectives, (ed.) David G. Horrell et al. (New York: T&T Clark International, 2010), 151. Voltaremos mais adiante à questão da Imago Dei.
- Gary North, The Dominion Covenant: Genesis. An Economic Commentary on the Bible, Vol 1 (Tyler TX: Institute for Christian Economics, Rev. ed., 1987), 32.
- Calvin E. Beisner, Prospects for Growth: A Biblical View of Population, Resources and the Future, (Westchester IL: Crossway Books, 1990), 163.
- Cornwall Alliance, “The Cornwall Declaration On Environmental Stewardship,” (Burke, VA: Cornwall Alliance, 2000). Note-se que estas referências não pretendem dar a entender que as conclusões teológicas destes autores sofrem de um viés ideológico em defesa do status quo económico. Faz-se apenas menção ao facto de North, Beisner e a Cornwall Alliance inserirem as suas considerações antropocêntricas e ecológicas no âmbito de argumentos económicos. Aferir um eventual viés requereria uma leitura mais cuidada destes autores e uma crítica mais aprofundada.
- Bouma-Prediger, 71.
[…] Na primeira parte deste ensaio lembrámos acusações feitas ao Cristianismo a respeito da origem da crise ambiental e vimos que essas acusações não sobrevivem a uma rigorosa análise histórica. Daqui em diante, vamos focar-nos na interpretação do mandato cultural. Mesmo concluindo que a acusação de Lynn White é historicamente falaciosa, poderíamos ser levados a pensar que não existe uma forma de interpretar esse mandato que esteja alinhada com as exigências do presente desafio ambiental. Noutras palavras, poderíamos considerar que esse mandamento torna o Cristianismo inapto no que respeita a responder aos desafios atuais, de tal modo que, no fim de contas, Lynn White tinha razão quando pedia uma nova religião. Mostremos, ao invés disso, uma forma de repensar a nossa antiga religião. […]