Não se brinca com palavras

Em todas as casas e em todas as infâncias há pelo menos um brinquedo proibido. Não se brinca com o fogo, dizem alguns pais, com as facas da cozinha, dizem outros. São apenas dois dos exemplos mais frequentes, mas certamente encontramos recomendações destas para todos os gostos e geralmente com nexo: não se brinca com o estojo de costura da mãe, não se brinca com armas de plástico (muito menos com a caçadeira herdada do avô e que vive trancada naquele móvel do sótão), não se brinca com comida, não se brinca com tomadas eléctricas… Só avisos pertinentes!

Mas conheço uma casa onde o brinquedo proibido é muito invulgar e há que duvidar da sua pertinência: a criança está proibida de brincar com palavras. Quando da boca da criança começaram a sair frases um pouco mais compostas – tudo o que ia além de vocábulos isolados – os pais rapidamente tomaram medidas para assegurar que a criança não usava palavras em vão. Repreendiam qualquer tipo de divagação no falar para que a criança aplicasse somente os termos estritamente necessários.

Para que o ensino oficial não contaminasse a criança com figuras de estilo, ela foi educada em casa, pelos pais. Aprendeu cedo todo o rigor da gramática. Enquanto as outras crianças da mesma idade trocavam complementos e predicados sem qualquer pudor, perante a complacência – e até o riso! – dos adultos, aquela criança aplicava as regras da sintaxe com perfeição sempre que tinha necessidade de construir uma frase mais comprida.

Para esta criança o dicionário é uma ferramenta de estudo essencial, e até de devoção, de modo a garantir que nunca cometa o pecado capital: usar uma palavra ou expressão fora de contexto. Até aqui a criança tem sido o orgulho dos pais. Quando brinca com as outras crianças, admoesta-as repetindo até à exaustão o aviso lá de casa: não se brinca com palavras, diz ela de forma veemente, chocada com o que ouve.

Os pais fundaram uma organização que se bate pela causa das monossílabas e depositam muita esperança na continuidade do seu trabalho por parte da criança. Dedicam a vida a este estranho activismo, mas, por usarem poucas palavras, estão conscientes de que os resultados do trabalho requerem tempo e que talvez só a próxima geração conheça efeitos significativos da sua luta. Temo-los visto a tentar ganhar espaço nos media para, assim, propagarem a prática do silêncio, o culto das frases curtas e pragmáticas, e a abolição de todas as espécies de floreados verbais.

O pai e a mãe da criança são almas gémeas. As metáforas seriam parte essencial de uma história de amor para qualquer casal, excepto para este casal que encara a metáfora como uma heresia hedionda. A literalidade é a âncora deste casamento. Se algum dia um deles incorrer na prática de eufemismo, hipérbole ou mesmo anástrofe, o mais certo é o casamento desmoronar. Mas esse é um perigo meramente teórico uma vez que eles empenham todo o cuidado e vigilância para que a literalidade não seja nunca beliscada.

E é esse mesmo cuidado e vigilância que esperam da criança. Até hoje, e segundo ouço dizer, ela tem sido fiel à causa. Mas não lhe conhecemos o futuro. É possível que venha a assimilar a doutrina dos pais e que venha um dia a presidir à organização que eles fundaram. Mas também é possível que, ou por rebeldia ou por suspeitar que se esconde algo de rico para lá da literalidade, ela comece a brincar com as palavras e, quem sabe, faça poesia.