O Regresso do Rei

by davidraimundo

Este não é um texto sobre o Senhor dos Anéis.
Também não é uma apologia do regime monárquico.
Este é um texto sobre o presente e sobre o futuro.

Mas comecemos pelo passado.

Passei os últimos dias do ano 2010 em Carcavelos, na Máquina de Sonhos. Nesse congresso houve uma mensagem que me caiu no goto: a Connie Duarte fez um paralelismo entre os impérios dos homens e o reino de Deus que me perturbou e que, lapidado pelo passar do tempo, pela reflexão, pela contribuição de outros agentes (os livros do Shane Claiborne, a música do Josh Garrels e do Derek Webb, e tantos outros) moldou a minha maneira de ver o mundo, o cristianismo e a História.

Lembro-me de algumas das passagens que fundamentaram essa mensagem. Foram usados excertos do Sermão do Monte como fonte para definir os valores do reino de Deus e também um excerto do capítulo 18 do Apocalipse como ilustração dos valores dos impérios dos homens:

“Estando de longe pelo temor do seu tormento, dizendo: Ai! ai daquela grande cidade de Babilônia, aquela forte cidade! pois em uma hora veio o seu juízo. E sobre ela choram e lamentam os mercadores da terra; porque ninguém mais compra as suas mercadorias: Mercadorias de ouro, e de prata, e de pedras preciosas, e de pérolas, e de linho fino, e de púrpura, e de seda, e de escarlata; e toda a madeira odorífera, e todo o vaso de marfim, e todo o vaso de madeira preciosíssima, de bronze e de ferro, e de mármore; E canela, e perfume, e mirra, e incenso, e vinho, e azeite, e flor de farinha, e trigo, e gado, e ovelhas; e cavalos, e carros, e corpos e almas de homens.” (Apocalipse 18:10-13)

Almas de homens.

A Babilónia, retratada e derrotada no Apocalipse, negociava almas de homens.

A Babilónia para os primeiros ouvintes e leitores do Apocalipse era uma figura representativa do temível Império Romano, que, de facto, massacrava, escravizava e oprimia homens.

A Babilónia que hoje vive ainda presente nos impérios do século: este mundo de competição e consumo à escala global continua a massacrar os mais frágeis e a escravizar os mais desprotegidos; esta era repleta de progresso e tecnologia continua a perpetuar a injustiça e a escravatura; nós continuamos a negociar almas de homens. A vida humana é só uma mera mercadoria como tantas outras, de valor inferior a tantas coisas.

Não sei se o Josh Garrels também ouviu a Connie, mas o que é certo é que ele canta de forma muito assertiva e cativante acerca do contraste que existe entre os reinos dos homens e o Reino de Deus. Eis uma parte da letra de Zion & Babylon:

“O meu reino é construído com o sangue de escravos
Órfãos, viúvas e sem-abrigo,
Eu vendi as suas almas para construir a minha mansão privada”
(…)
“O meu reino é construído com o sangue do meu Filho
Sacrifício abnegado por todos os homens
Fé, amor, esperança e harmonia”

Quão diferentes são as metanarrativas dos impérios dos homens e a metanarrativa que Cristo propôs e encarnou. E quão profundo é o contraste entre as Babilónias da História e o Sermão do Monte:

“Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome;
Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu;
O pão nosso de cada dia nos dá hoje;
E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores;
E não nos conduzas à tentação; mas livra-nos do mal; porque teu é o reino, e o poder, e a glória, para sempre. Amém.” (Mateus 6:9-13)

E podíamos recuar até às bem-aventuranças e encontrar ali conselhos únicos para o cidadão do Reino de Deus. Conselhos loucos? Contra-culturais? Impraticáveis? Bom, creio que por mais bizarros que eles nos pareçam, ali encontramos o sentido e o propósito da vida. Encontramos a essência do carácter de Deus e do seu Reino.

Ou podíamos avançar pelo capítulo 6 de Mateus e continuamos a encontrar exortações absurdas: não ajuntem tesouros na terra; não se preocupem com o que hão-de comer ou beber; não se preocupem com o dia de amanhã; busquem primeiro o Reino de Deus…

Mas que coisa é esta chamada Reino de Deus?

Talvez possamos dizer que o Reino de Deus é a versão sadia do sonho hippie. Talvez possamos dizer que o Reino de Deus é a versão possível – e muito melhor – do ideal que o John Lennon imaginou. Talvez possamos dizer que o Reino de Deus é a versão divina de todas as metanarrativas que o homem constrói (que acabam por degenerar e tornar-se tóxicas).

Talvez possamos dizer que o Reino de Deus é onde reinam a justiça e a paz; um Reino onde a reconciliação é uma realidade que se sente no aroma da brisa que ali sopra; um Reino onde a cooperação e a generosidade são as manifestações práticas do carácter dos seus cidadãos; um Reino onde cada um considera o próximo como uma pessoa preciosa, inestimável, digna de cuidado e de amor. (Um Reino no qual o Salmo 146 se concretiza plenamente.)

Quando Cristo andou entre os homens, ele anunciou que este Reino estava a chegar. E hoje cremos que o Reino já foi inaugurado: a coroação do Rei foi feita com uma coroa de espinhos e em vez de um trono deram-lhe uma cruz.

O Reino é o já e o ainda não: um Reino que está presente no mundo, como o fermento no meio da massa, mas cuja presença passa despercebida, agindo de forma subversiva e limitada, pois ainda não está concretizado na sua plenitude.

Entretanto, como afirmava Robinson Cavalcanti, a missão da Igreja é manifestar, aqui e agora, a maior densidade possível do Reino de Deus, que será consumado ali e além.

Esta afirmação reflete a convicção de que o Sermão do Monte não é uma lista de conselhos impraticáveis. É o guia por excelência para a praxis da Igreja. O discípulo de Cristo não é, portanto, um cínico que encerra o Sermão do Monte numa gaveta fechada a cadeado colando-lhe o rótulo de ‘utopia’. O cristão arregaça as mangas e procura exprimir de todas as formas possíveis a natureza do Reino do qual já é cidadão. Procura resgatar as almas dos homens que os impérios babilónicos negoceiam entre si. Procura afirmar a verdade e a justiça em palavras e actos.

Mas também não caímos na tentação oposta: o optimismo do progresso não nos contagia; a tarefa em mãos é hercúlea. Face aos problemas gigantescos do nosso mundo a nossa impotência é gritante e frustrante. É impossível não fazermos eco do clamor dos apóstolos: ora vem, Senhor Jesus!

A Madre Teresa dizia que não podemos fazer grandes coisas, apenas podemos fazer pequenas coisas com grande amor. Desconfio que ela tem razão…

Para tratar das grandes coisas,
Para que o Reino seja uma realidade plena,
Para que a justiça e a paz sejam nossas companheiras chegadas,
Para que não hajam mais lágrimas,
Aguardamos com expectativa
O regresso do Rei.